quarta-feira, 22 de maio de 2019

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo"


Tão vil e baixo quanto eu há muito, já existiram tantos outros e ao mundo ainda virão como multidões. Despiadados de si, habitando a existência como se não fossem nada e com nada, muito provavelmente, ficarão do quinhão que lhes será negado. Somo a essas hordas como seu semelhante mais renegado. Ansioso por espaços cuja aura seja timbrada pelo sucesso. Contudo, permaneço aquém de meus sonhos, caminhando puerilmente pelo chão, acostumando à poeira da qual evolui como multi-complexo conjunto celular de alto consumo energético. Vivo à sombra dos meus mais caros colegas, divisando através de vitrines embaçadas a glória alheia. Ciente disso, guardo minhas ambições para mim e meus demônios que me alimentam desse rancor e indiferença, desiludindo-me de minhas conquistas mais possíveis. Receio de pecar pela vaidade ou pela soberbia em meus discursos sem audiência. Sigo, por isso, crente em meu fracasso, orgulhoso de minha desonra, um miserável assumido que sobrevive de seus pequenos parasitismos. Não tenho porque negar o óbvio, o mais claro, a evidência mesma da minha passagem sobre o mundo. Está para mim como está para quem queira ver. Haja vista que o rasto de um miserável só é dado possível a ver por quem muito se interessa. Mais um entre os quasenadas que pesam sobre o mundo. Reconheço o meu fracasso não para que tenham pena de mim, mas para que me esqueçam. Não acredito em boas intenções e tão pouco em falsas generosidades. Reconheço meu fracasso para que eu dele mesmo me esqueça, acostumando-me finalmente com o acre gosto da experiência. Condição coerente como meu modo de andar, apresentar-se e relacionar-se com as pessoas. Reconheço tudo aquilo o que para os outros é abjeto não para ser humilde ou mais humano que meu próximo. Faço de meu discurso sincero, o mais vil produto da minha mesquinhez. Pelo reles desejo em ser muito bom finalmente em algo, mesmo que seja para o insucesso. Pedra basilar da estrutura de desamor que ergui em torno de mim, afastando de si aqueles mais impróprios para penetrá-lo. Meu mundo de metas não alcançadas, planos desfeitos, projetos inacabados e derrotas humilhantes. Tudo meu e do qual sou único responsável. Reconheço novamente meu fracasso como ato político, pois em um mundo onde predomina o esforço individual e o discurso de elogio ao sucesso pessoal, eu sou a mais mórbida vertente de sua oposição. Menos do que eu, há muitos, mas deles poucos se sabe ou quase não se viu.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Diálogos

- Eita! Tá passeado?
- Que passeando o que? Quem passei é pobre, rico tá sempre por aí.

sábado, 15 de novembro de 2014

Carta



A carta havia sido entregue sob os cuidados de terceiros, tantos dias arrematada de seu remetente e ainda tão distante de seu destinatário a faziam frágil e urgente. Entregue como nos velhos tempos, naqueles em que ainda se escreviam cartas de amor, heróicas missivas de juras e promessas em envelopes não nomeados. Escrita a mão e sem cabeçalho, ela não tinha pretensão maior do que confessar a sobrevida de um amor já antigo. A carta se deslocou semanas, reservada entre gavetas e capas de caderno para alcançar as mãos de seu destino, quase não foi entregue, quiçá sua relutância em deixar de ser folha para se tornar carta fosse vaticino sobre um alvo incerto ou apenas um querer rebelde de quem foi posta no mundo para viajar. Por fim soube-se da entrega, anúncio tão inesperado como, imagino ser, foi aquele da sua chegada; fosse para ele como aquelas visitas que concluem sua estadia com um adeus inesperado, fosse para ela, como aquelas que irrompem a tranquildade de um dia comum com sua presença, ambas as pontas da linha deviam ter saído do prumo quase simultaneamente.
Talvez. Talvez não e simplesmente, como para toda a situação, existam dois pesos e duas medidas. A velha e desregulada balança das éticas e morais humanas. Assim, quem sabe simplesmente não a abandonou sobre o banco de uma estação, distraída como quem tem problemas de mais gravidade à seu encargo, após o toque do último apito do trem? Não, afinal, quem em dias como os de hoje, estes de comunicação tão rarefeita, resistiria ao charme e tentação de uma missiva informal e pessoal? Não há dúvida, a abriu com sanha e desejo de quem busca por água em um deserto e tem apenas à vista jogo dúbios de uma mente desesperada! Quem queremos enganar? Sabia-se um pouco sobre o seu gênio para ter certeza de que, o enfado do primeiro suspiro, jamais superaria a curiosidade sobre o conteúdo das letras que agora deveriam serpentear sob suas vistas com tanta delicadeza. Um fato era certo, lera, caso realmente haja lido, de apenas um golpe; fôlego tinha em seus pulmões, assim como todos nós necessitamos ter, porém atravessar o desespero do amor alheio quase sem desvios soa um tanto como a habilidade de quem pratica apnéia em suas horas vagas na piscina de um clube.
Sobre uma carta tem direito quem a escreveu, assim o dizem, igualmente pode ser dito sobre o quê foi escrito. Pois quem disse que quem a leu tem acesso ao mesmo conteúdo de quem a escreveu? Quem pode sondar o que se oculta atrás das letras impressas sobre um papel? A carta é antes um mensageiro do que propriamente uma mensagem, quem espera a porta do anfitrião pela recompensa, ou melhor, pela resposta. Réplica que varia desde uma mensagem, carta ou a própria devolução do envelope, a resposta mais aclarada para os flertes indesejados. Para todas as alternativas, não existe aquela sem resposta, toda resposta é bem vinda, toda resposta guarda a maldição de quem a espera.
A carta lhe chegou como um raio solar cruzando o fosso de uma nuvem espessa, a atmosfera pesada daquele dia refletia em muito o humor pesado daquele semblante indiferente. Caindo sobre suas mãos como a primeira gosta de água cai sobre o solo anunciando a chega de uma tempestade torrencial, caíram iguais muitas outras sobre sua cabeça quando iniciou sua leitura. Buscou refúgio da chuva como quem deseja um ambiente tranqüilo para leitura; queria uma dose de café de coador e conforto para refestelar-se para algumas horas de narrativa. Não optou nem ao banco da estação de trem e tão pouco ao balcão de mármore da padaria próximo a sua casa. Foi a sua cama que, junto aos gatos que costumam serpentear pela casa quando ela não está, preferiu abrir a carta para deparar-se com notícias de quem quase já não se recordava. Lia com apreço as letras de quem sempre soube dispunha de talento para as palavras e aos pouco consumia a carta, entre um gole e outro do conteúdo denso e escuro da sua caneca. Sempre fora agradável receber notícias de quem está longe e dessa vez não era diferente, iluminavam um tanto que fosse o mormaço de um dia que terminava um pouco mais respirável. Digeria aquelas linhas como a mais um conto entre tantos outros que a aguardavam de sua estante de madeira após o término deste. Tinha muito a dizer como resposta, apenas não havia urgência, largou então a carta sobre a escrivaninha e sacou um dos livros que a esperavam e aos poucos foi tomada de novas e distintas sensações da primeira leitura.
Ambas as pontas da linha conectavam mundos muito diversos. Dois lados de uma mesma página de caderno que dispunham de reflexos tão incompatíveis quanto incompreensíveis – parecia mais uma vez que Alice havia atravessado o espelho e encontrado do outro lado tudo invertido.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Menina no Escuro



A história destas linhas, escrita em terceira pessoa, é sobre uma menina, contada desta maneira porque a inaptidão dela para narrar a própria história é a mesma para resolvê-la. Solucioná-la não enquanto forma ou estilo, mas antes quanto ao epílogo. À pergunta "que fim terás tudo isso?", ela contestaria simplesmente não saber. Quem a mira em sua leveza, porém, não imaginaria; risada lassa e gestos de nanquim, daquelas que aparentam mundos que realmente não existem. Sedução e assombro que somente podem ser produzidos por uma mulher. Entretanto, essa menina, mesmo tão moça, jamais abandonaria sua primeira infância.
Há medos que, todos sabem, ocultam-se dentro de nós mesmos, diferente daqueles comuns como o medo do escuro ou o medo de altura, reproduzidos por meio da equação mais simples – o desconhecido – há aqueles cujas causas são tão destrutivas quanto intangíveis. Era deste último que a narrativa contada por ela se embebia, impregnada de traumas e receios, eram poucos os que compartilhavam deste segredo. A menina tinha um medo inaudito das coisas que, dizia, ocultavam-se sob sua cama. Soava como uma daquelas fábulas criadas em dias solidão, momento daqueles em que o terror nos faz companhia e a ele, alimentamos com ternura.
Um dia, sobre o conforto de sua intimidade, duvidaram sobre a existência daquele gênero de ameaças, como algo tão poderoso poderia sobreviver no esquecimento que o vácuo entre o assoalho de seu quarto e o estrato de sua cama gerava? Pediam-lhe, "deixe-me que olhes e espantes aquilo que te paralisas", a negação à ajuda alheia não era efeito de soberbia ou ingratidão, eram antes desejos íntimos de quem não acreditava naquele exorcismo. Meteram-se sob sua cama apesar das contraindicações e nada encontraram na vastidão daquele breu, apenas um rosto lastimoso, esperando a beirada do encosto, com um segredo inconfessado entre os lábios. Vieram outros heróis a entrada da caverna, armadura reluzente e cavalo branco, mil boas intenções para curar um coração mil vezes repartido, todos contra o mal que se alimentava do escuro. Um monstro que, além de viver alimentando-se de negrume, era também invisível, assim, quem procurava não encontrava e quem sabia encontrá-lo, não o buscava.
O medo já era tão confortável para a menina que, viver sem ele, parecia-lhe como viver outra de si. Outra desconhecida e por isso, igualmente temerosa, então por que abandonar um medo conhecido por um imprevisível? Segui-a lhe como uma sombra, caminhando absorto sob seus próprios passos, como um cego guiado por uma companheira, a quem a via não sabia, entretanto, quem era o cego ou quem era a guia. Um dia me contou como, caminhando, deparou-se com seu reflexo diante da vitrine de uma loja, não eram os sapatos ou os vestidos esbeltos que lhe chamavam a atenção, mas antes sua própria imagem que, sobreposta àquelas cores e publicidades, não a faziam crer no que enxergava. Havia mudado tanto, tão profundamente, quanto os anos de idade jamais poderiam ser responsabilizados. Tinhas diante de si, outra pessoa, charme e doçura de outrora que agora conviviam com o medo de sempre.
Tão inseparável era essa menina de sua face obscura que a fazia ocultar-se de todo foco de luz, precaução contra algo que poderia lhe prejudicar, como quando cerramos nossos olhos em um gesto instintivo após irromperem as luzes em um ambiente escuro, afugentamos a claridade de nossas retinas como ela repelia toda tentativa de aproximação. Seu passeio solitário então se enveredava por um jardim noturno, um labirinto sem luz, conduzida apenas por um chamado, semelhante às miragens de oásis que induzem desesperados em desertos, ele parecia prolongar uma longa viagem até a desaparição, sendo que a última causa para o olvido não era o falso chamado se não a plena escuridão sobre a qual havia mergulhado.
Todos somos feitos de luzes e sombras, essa menina também.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Diálogos

- Melhor, bonito?
- Igual. É uma melancolia tão suave, como a maré calma, sabe? Mas ao mesmo tempo tão profunda como o enjôo daqueles que não conseguem viajar de barco.
- Amar é a maré

segunda-feira, 24 de março de 2014

O menino que não sabia chorar

Era daquelas crianças fortes e saudáveis que não chamam mais atenção a não ser pelo fato de serem sorridentes. Sorrisos tão esgarçados que chegavam a tornar-se sinônimos para a alegria. Todos no bairro se admiravam do quão “bonzinho” era aquele guri. Mesmo cair e ralar o joelho era um ato que despertava riso, então pouco ainda recordava-se do estranhamento do cirurgião responsável pelo parto da criança, quando este não despertou um esperneio de lágrimas no menino que acabara de nascer ao dar-lhe um safanão em suas nádegas. Diagnóstico: criança normal, porém com ausência de pranto.
O menino cresceu com um estigma a qual poucos se davam conta, ele não chorava. Fossem pretextos emocionais ou razões físicas, nada lhe tirava uma lágrima se quer; mesmo quando ria demasiado, seus olhos, tão pouco, lacrimejavam. Ninguém adivinhava a que ordem, moral, psicológica, médica, genética, pertenciam às causas que levavam a este fenômeno. E a verdade é que mesmo os pais, pouco se importavam, afinal houvera sido um sonho passar pela crise dos primeiros anos da maternidade sem os choros noturnos constantes. A criança não era menos sapeca ou arteira, porém as noites eram extremamente silenciosas na casa.
Para a criança parecia ser igualmente uma vantagem, um regalo dos céus, utilizado nos momentos de querelas infantis mais urgentes. Todo indício de dor era insuspeito - naquele coração - um ou dois quartos o tamanho de um adulto, principiava a germinar um orgulho já quase maduro. Quando naquele sábado de manhã rebentou uma peleja no campinho de terra batida da praça do bairro, todos os garotos pensavam ter visto sair sangrando do terreno, um homem com corpo de menino, suas lágrimas eram vermelhas e o respeito era geral. O comentário do dia seguinte na escola, não era outro diziam que ele não sentia dor, a verdade era que ele não sabia dizer como sentia. Havia algo de diferente naquele mancebo, os professores, os vizinhos, os colegas; todos percebiam, entretanto não sabiam atinar para o quê. Já os pais tinham alguns receios, ainda assim, a criança cresceu sem ser incomodada com questões clínicas ou psiquiátricas e jamais duvidaram da existência e funcionamento corretos de suas glândulas lacrimais.
Depois de menino, homem feito, passado a infância e boa parte da juventude sem uma gota de fel, agora adentrava o mundo dos adultos e das grandes preocupações munido apenas de palavras. Aquele que jamais havia chorado estava agora em um mundo aonde chorar não era permitido. Dor e emoção quando expressas eram sinônimos de fraqueza, competição e orgulho vigoravam como valores aos quais a sua natureza lhe havia concedido um benefício estético. Conquanto seu triunfo fosse invejado, a vida, mais do que os homens, havia-lhe ensinado a vã glória de sua mácula. Afinal, as palavras do menino que cresceu poeta por desvio fisiológico, dariam para descargar o peso de um coração impressionado? Queriam que ele chorasse no enterro de sua mãe, porém não conseguiu e tão pouco seu pai viu brilharem seus olhos desde a cama donde permanecia internado. Queria ele chorar? Não sentia dor porque não choravas? Quanto lamento cabia em uma palavra?
Um dia, a existência parou de lhe cobrar lágrimas, não mais elas fariam diferença para quem tão bem manejava as palavras. Na alegria e na tristeza, elas pintavam o quadro das sensações que ele poderia dispor, paisagens infernais e celestes descortinavam da sua língua para o exterior de seu âmago. Até que um dia, ele mesmo deixou de se acreditar, sua dor e seu amor era verdadeiros? Queria chorar, mas não sabia, queria chorar pelo simples fato de que não podia.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Reino dos Encantados

Como disse Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é". A desambiguidade da frase se revela na verdade que ignoramos, o fundo cultural sob o qual se levantou a nação brasileira é indígena, assim, inconscientemente guardamos um mesmo caudal de ideias sobre nosso modus de relação com o mundo e com os outros. Subsiste à padronização comportamental e o ensejo consumista que vigora como arquétipo sobre nossas cabeças, uma raiz que se estende e penetra o interior do continente, um fluxo contínuo de referências etimológicas, medicinais, cosmológicas e estéticas. Apesar da força do processo civilizatórios, o mapa das trocas e transformações das culturas indígenas semeou um terreno fértil para construção de uma estrutura que emerge das maneiras mais inadvertidas e inesperadas possíveis.
Caso desses me foi ofertado aqui em casa certa vez, minha mãe em uma conversa rotineira fez o dito comentário: "...coisa do Reino dos Encantados". Curioso, lhe perguntei da onde havia retirado a expressão 'Reino dos Encantados', ao que ela respondeu que simplesmente ignorava. Verdade é que tal expressão aparece igualmente no discurso cosmológico Mura, população indígena do Rio Madeira na Amazônia, com a qual definem a terra dos Caboclos do Fundo, seres demoníacos que habitam as águas mais profundas dos rios e igarapés pelos quais, todos os dias, essas comunidades cruzam com imensa cautela. Relação que se revela conflituosa dada a hostilidade com que os Mura lidam com os espaços de suas primeiras necessidades, o rio e a floresta, em contraste com o espaço de segurança e tranquilidade da aldeia.
O ponto em questão é a conexão entre o interior em que minha mãe cresceu e se formou e o pensamento ameríndio, instrumental filosófico poderoso e ainda desconhecido. Por mais que as bases de existência e formação tenham sido diferentes, nada estas tem haver com os caminhos que os pensamentos desenham e inventam.