A Ditadora das
Cores mantinha um dispositivo de visualização e apreensão regrado e
disciplinado em relação à classificação das cores. Conhecida entre seus iguais
como Madame Dégradé, residia em uma fortaleza transparente, a Casa de Vidro, da
qual estabelecia um violento sistema de vigilância sobre as cores do mundo.
Vestia-se em sua paleta de cores cujas anáguas da saia a tornavam volumosa e
visível a toda Corte. A gola ampla, caída sobre os ombros, criava um claro contraste
entre sua pele de um branco tênue sobre o circulo cromático que avançava sobre
os tecidos e rendas de suas vestes. Seu desfile diário descendendo desde as
escadas circulares de sua torre particular, localizada à grande altura, até a
sala do trono, sustentavam um ritual de sacralização de sua imagem e de
padronização da recepção e percepção coletiva dos fótons através das retinas
alheias.
A Corte, branca
em seus trajes de renda e seda, refletia os desejos e aspirações daquela que
portava como cetro, o único prisma de cristal do reino. Seu Gradiente, enquanto
constituição outorgada, fazia-se conhecer como lei através da Guarda Tonal e da
fiscalização panóptica que as paredes de seu castelo impostavam. Eram proibidos
todos os lápis de cor e tintas coloridas, qualquer infração deste nível era
brutalmente reprimida com a prisão e a cegueira, pena capital naquele rincãozinho
do mundo.
As histórias
daqueles que resistiam eram conhecidas – descoloridas em seu silêncio – ainda
se faziam ver desenhadas em blocos de papel com o preto e o branco. Neles, em
linhas tímidas, retratavam-se o contrabando de canetinhas vindas de terras
distantes e os piches multicores amanhecidos sobre as paredes das casas, fruto
de distúrbios noturnos, rapidamente apagados pela corja de serviçais que
trabalhavam a favor da boa moral, da ética e da composição comportada das
cores. A Guarda Tonal ou "boçal", como eram conhecidos pelos plebeus
comuns, era composta por brutamontes encouraçados com armadura de ferro
enegrecido, mesmo a íris de suas membranas oculares não destoavam daquele
padrão acromático, cuja única função era salvaguardar o monopólio das cores
mantido pelo Estado e pela autoridade da Ditadura, desafiada somente pela
natureza e pelo arco-íris que cotidianamente irrompia sob os céus.
Àqueles que
jamais tinham escutado sobre Governo e Constituição parecida, lhe soará
disparate maior quando tiverem conhecimento sobre o estatuto da música naquele mundo.
Atividade proibida e taxada das mais subversivas, sua condição marginal era justificada
no juízo posto pelos discursos diários publicados e divulgados pela assessoria
de impressa do castelo. Segundo razão da própria Madame Dégradé, a relação íntima
que subsistia entre a escala tonal e a escala das cores tornavam a primeira,
uma influencia extremamente perniciosa para a educação e formação de seus
súditos. Visto que, a tradução subjacente à relação de ambas abria um
precedente para o exercício e o estímulo do livre arbítrio. Apenas a sugestão,
as medidas coibitivas do Estado revelavam essa doutrina, da existência da
capacidade de interpretar inerente à própria estrutura de apreensão sensorial
humana impedia qualquer projeto ideológico de Nação, necessário não somente
para o equilíbrio mental e físico da população, mas, mormente para a manutenção
de uma ordem social, política e econômica pré-existente à própria sociedade.
Porém, todos o
sabem, toda ordem imposta é uma farsa, uma fantasia de mentes prepotentes
baseada em conceitos estéreis, dispostos a domesticar o mundo e a limitar a relação
com o mesmo. Os habitantes daquela região tinham suas ações restringidas e
veladas, mas seus aparelhos de recepção fugiam à regra; e da mente, cujas
janelas eram as vista para o universo, frutificavam poesias. Afinal, a
compreensão das cores é idiossincrática e sua recepção é apenas a primeira
etapa de um processo que envolve em seu desenvolvimento, a bagagem e as
experiências pessoais de cada indivíduo. Tudo isso, Madame Dégradé bem o sabia,
era demasiadamente perigoso, pois sempre dizia aos conselheiros: "em toda caixa de lápis de cores há um traço
rebelde e todo buque de flores é potencialmente um buquê de Esperitina Martins".
O que não haviam contestado à Rainha de Copas do País das Cores era tão
somente, o quão ridícula a viam através daquelas muralhas transparentes em sua
indumentária confeccionada pelo grande estilista Kaspar Faber.