sábado, 28 de setembro de 2013

Ditadora das Cores

A Ditadora das Cores mantinha um dispositivo de visualização e apreensão regrado e disciplinado em relação à classificação das cores. Conhecida entre seus iguais como Madame Dégradé, residia em uma fortaleza transparente, a Casa de Vidro, da qual estabelecia um violento sistema de vigilância sobre as cores do mundo. Vestia-se em sua paleta de cores cujas anáguas da saia a tornavam volumosa e visível a toda Corte. A gola ampla, caída sobre os ombros, criava um claro contraste entre sua pele de um branco tênue sobre o circulo cromático que avançava sobre os tecidos e rendas de suas vestes. Seu desfile diário descendendo desde as escadas circulares de sua torre particular, localizada à grande altura, até a sala do trono, sustentavam um ritual de sacralização de sua imagem e de padronização da recepção e percepção coletiva dos fótons através das retinas alheias.
A Corte, branca em seus trajes de renda e seda, refletia os desejos e aspirações daquela que portava como cetro, o único prisma de cristal do reino. Seu Gradiente, enquanto constituição outorgada, fazia-se conhecer como lei através da Guarda Tonal e da fiscalização panóptica que as paredes de seu castelo impostavam. Eram proibidos todos os lápis de cor e tintas coloridas, qualquer infração deste nível era brutalmente reprimida com a prisão e a cegueira, pena capital naquele rincãozinho do mundo.
As histórias daqueles que resistiam eram conhecidas – descoloridas em seu silêncio – ainda se faziam ver desenhadas em blocos de papel com o preto e o branco. Neles, em linhas tímidas, retratavam-se o contrabando de canetinhas vindas de terras distantes e os piches multicores amanhecidos sobre as paredes das casas, fruto de distúrbios noturnos, rapidamente apagados pela corja de serviçais que trabalhavam a favor da boa moral, da ética e da composição comportada das cores. A Guarda Tonal ou "boçal", como eram conhecidos pelos plebeus comuns, era composta por brutamontes encouraçados com armadura de ferro enegrecido, mesmo a íris de suas membranas oculares não destoavam daquele padrão acromático, cuja única função era salvaguardar o monopólio das cores mantido pelo Estado e pela autoridade da Ditadura, desafiada somente pela natureza e pelo arco-íris que cotidianamente irrompia sob os céus.
Àqueles que jamais tinham escutado sobre Governo e Constituição parecida, lhe soará disparate maior quando tiverem conhecimento sobre o estatuto da música naquele mundo. Atividade proibida e taxada das mais subversivas, sua condição marginal era justificada no juízo posto pelos discursos diários publicados e divulgados pela assessoria de impressa do castelo. Segundo razão da própria Madame Dégradé, a relação íntima que subsistia entre a escala tonal e a escala das cores tornavam a primeira, uma influencia extremamente perniciosa para a educação e formação de seus súditos. Visto que, a tradução subjacente à relação de ambas abria um precedente para o exercício e o estímulo do livre arbítrio. Apenas a sugestão, as medidas coibitivas do Estado revelavam essa doutrina, da existência da capacidade de interpretar inerente à própria estrutura de apreensão sensorial humana impedia qualquer projeto ideológico de Nação, necessário não somente para o equilíbrio mental e físico da população, mas, mormente para a manutenção de uma ordem social, política e econômica pré-existente à própria sociedade.
Porém, todos o sabem, toda ordem imposta é uma farsa, uma fantasia de mentes prepotentes baseada em conceitos estéreis, dispostos a domesticar o mundo e a limitar a relação com o mesmo. Os habitantes daquela região tinham suas ações restringidas e veladas, mas seus aparelhos de recepção fugiam à regra; e da mente, cujas janelas eram as vista para o universo, frutificavam poesias. Afinal, a compreensão das cores é idiossincrática e sua recepção é apenas a primeira etapa de um processo que envolve em seu desenvolvimento, a bagagem e as experiências pessoais de cada indivíduo. Tudo isso, Madame Dégradé bem o sabia, era demasiadamente perigoso, pois sempre dizia aos conselheiros: "em toda caixa de lápis de cores há um traço rebelde e todo buque de flores é potencialmente um buquê de Esperitina Martins". O que não haviam contestado à Rainha de Copas do País das Cores era tão somente, o quão ridícula a viam através daquelas muralhas transparentes em sua indumentária confeccionada pelo grande estilista Kaspar Faber.