segunda-feira, 24 de março de 2014

O menino que não sabia chorar

Era daquelas crianças fortes e saudáveis que não chamam mais atenção a não ser pelo fato de serem sorridentes. Sorrisos tão esgarçados que chegavam a tornar-se sinônimos para a alegria. Todos no bairro se admiravam do quão “bonzinho” era aquele guri. Mesmo cair e ralar o joelho era um ato que despertava riso, então pouco ainda recordava-se do estranhamento do cirurgião responsável pelo parto da criança, quando este não despertou um esperneio de lágrimas no menino que acabara de nascer ao dar-lhe um safanão em suas nádegas. Diagnóstico: criança normal, porém com ausência de pranto.
O menino cresceu com um estigma a qual poucos se davam conta, ele não chorava. Fossem pretextos emocionais ou razões físicas, nada lhe tirava uma lágrima se quer; mesmo quando ria demasiado, seus olhos, tão pouco, lacrimejavam. Ninguém adivinhava a que ordem, moral, psicológica, médica, genética, pertenciam às causas que levavam a este fenômeno. E a verdade é que mesmo os pais, pouco se importavam, afinal houvera sido um sonho passar pela crise dos primeiros anos da maternidade sem os choros noturnos constantes. A criança não era menos sapeca ou arteira, porém as noites eram extremamente silenciosas na casa.
Para a criança parecia ser igualmente uma vantagem, um regalo dos céus, utilizado nos momentos de querelas infantis mais urgentes. Todo indício de dor era insuspeito - naquele coração - um ou dois quartos o tamanho de um adulto, principiava a germinar um orgulho já quase maduro. Quando naquele sábado de manhã rebentou uma peleja no campinho de terra batida da praça do bairro, todos os garotos pensavam ter visto sair sangrando do terreno, um homem com corpo de menino, suas lágrimas eram vermelhas e o respeito era geral. O comentário do dia seguinte na escola, não era outro diziam que ele não sentia dor, a verdade era que ele não sabia dizer como sentia. Havia algo de diferente naquele mancebo, os professores, os vizinhos, os colegas; todos percebiam, entretanto não sabiam atinar para o quê. Já os pais tinham alguns receios, ainda assim, a criança cresceu sem ser incomodada com questões clínicas ou psiquiátricas e jamais duvidaram da existência e funcionamento corretos de suas glândulas lacrimais.
Depois de menino, homem feito, passado a infância e boa parte da juventude sem uma gota de fel, agora adentrava o mundo dos adultos e das grandes preocupações munido apenas de palavras. Aquele que jamais havia chorado estava agora em um mundo aonde chorar não era permitido. Dor e emoção quando expressas eram sinônimos de fraqueza, competição e orgulho vigoravam como valores aos quais a sua natureza lhe havia concedido um benefício estético. Conquanto seu triunfo fosse invejado, a vida, mais do que os homens, havia-lhe ensinado a vã glória de sua mácula. Afinal, as palavras do menino que cresceu poeta por desvio fisiológico, dariam para descargar o peso de um coração impressionado? Queriam que ele chorasse no enterro de sua mãe, porém não conseguiu e tão pouco seu pai viu brilharem seus olhos desde a cama donde permanecia internado. Queria ele chorar? Não sentia dor porque não choravas? Quanto lamento cabia em uma palavra?
Um dia, a existência parou de lhe cobrar lágrimas, não mais elas fariam diferença para quem tão bem manejava as palavras. Na alegria e na tristeza, elas pintavam o quadro das sensações que ele poderia dispor, paisagens infernais e celestes descortinavam da sua língua para o exterior de seu âmago. Até que um dia, ele mesmo deixou de se acreditar, sua dor e seu amor era verdadeiros? Queria chorar, mas não sabia, queria chorar pelo simples fato de que não podia.