sábado, 15 de novembro de 2014

Carta



A carta havia sido entregue sob os cuidados de terceiros, tantos dias arrematada de seu remetente e ainda tão distante de seu destinatário a faziam frágil e urgente. Entregue como nos velhos tempos, naqueles em que ainda se escreviam cartas de amor, heróicas missivas de juras e promessas em envelopes não nomeados. Escrita a mão e sem cabeçalho, ela não tinha pretensão maior do que confessar a sobrevida de um amor já antigo. A carta se deslocou semanas, reservada entre gavetas e capas de caderno para alcançar as mãos de seu destino, quase não foi entregue, quiçá sua relutância em deixar de ser folha para se tornar carta fosse vaticino sobre um alvo incerto ou apenas um querer rebelde de quem foi posta no mundo para viajar. Por fim soube-se da entrega, anúncio tão inesperado como, imagino ser, foi aquele da sua chegada; fosse para ele como aquelas visitas que concluem sua estadia com um adeus inesperado, fosse para ela, como aquelas que irrompem a tranquildade de um dia comum com sua presença, ambas as pontas da linha deviam ter saído do prumo quase simultaneamente.
Talvez. Talvez não e simplesmente, como para toda a situação, existam dois pesos e duas medidas. A velha e desregulada balança das éticas e morais humanas. Assim, quem sabe simplesmente não a abandonou sobre o banco de uma estação, distraída como quem tem problemas de mais gravidade à seu encargo, após o toque do último apito do trem? Não, afinal, quem em dias como os de hoje, estes de comunicação tão rarefeita, resistiria ao charme e tentação de uma missiva informal e pessoal? Não há dúvida, a abriu com sanha e desejo de quem busca por água em um deserto e tem apenas à vista jogo dúbios de uma mente desesperada! Quem queremos enganar? Sabia-se um pouco sobre o seu gênio para ter certeza de que, o enfado do primeiro suspiro, jamais superaria a curiosidade sobre o conteúdo das letras que agora deveriam serpentear sob suas vistas com tanta delicadeza. Um fato era certo, lera, caso realmente haja lido, de apenas um golpe; fôlego tinha em seus pulmões, assim como todos nós necessitamos ter, porém atravessar o desespero do amor alheio quase sem desvios soa um tanto como a habilidade de quem pratica apnéia em suas horas vagas na piscina de um clube.
Sobre uma carta tem direito quem a escreveu, assim o dizem, igualmente pode ser dito sobre o quê foi escrito. Pois quem disse que quem a leu tem acesso ao mesmo conteúdo de quem a escreveu? Quem pode sondar o que se oculta atrás das letras impressas sobre um papel? A carta é antes um mensageiro do que propriamente uma mensagem, quem espera a porta do anfitrião pela recompensa, ou melhor, pela resposta. Réplica que varia desde uma mensagem, carta ou a própria devolução do envelope, a resposta mais aclarada para os flertes indesejados. Para todas as alternativas, não existe aquela sem resposta, toda resposta é bem vinda, toda resposta guarda a maldição de quem a espera.
A carta lhe chegou como um raio solar cruzando o fosso de uma nuvem espessa, a atmosfera pesada daquele dia refletia em muito o humor pesado daquele semblante indiferente. Caindo sobre suas mãos como a primeira gosta de água cai sobre o solo anunciando a chega de uma tempestade torrencial, caíram iguais muitas outras sobre sua cabeça quando iniciou sua leitura. Buscou refúgio da chuva como quem deseja um ambiente tranqüilo para leitura; queria uma dose de café de coador e conforto para refestelar-se para algumas horas de narrativa. Não optou nem ao banco da estação de trem e tão pouco ao balcão de mármore da padaria próximo a sua casa. Foi a sua cama que, junto aos gatos que costumam serpentear pela casa quando ela não está, preferiu abrir a carta para deparar-se com notícias de quem quase já não se recordava. Lia com apreço as letras de quem sempre soube dispunha de talento para as palavras e aos pouco consumia a carta, entre um gole e outro do conteúdo denso e escuro da sua caneca. Sempre fora agradável receber notícias de quem está longe e dessa vez não era diferente, iluminavam um tanto que fosse o mormaço de um dia que terminava um pouco mais respirável. Digeria aquelas linhas como a mais um conto entre tantos outros que a aguardavam de sua estante de madeira após o término deste. Tinha muito a dizer como resposta, apenas não havia urgência, largou então a carta sobre a escrivaninha e sacou um dos livros que a esperavam e aos poucos foi tomada de novas e distintas sensações da primeira leitura.
Ambas as pontas da linha conectavam mundos muito diversos. Dois lados de uma mesma página de caderno que dispunham de reflexos tão incompatíveis quanto incompreensíveis – parecia mais uma vez que Alice havia atravessado o espelho e encontrado do outro lado tudo invertido.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Menina no Escuro



A história destas linhas, escrita em terceira pessoa, é sobre uma menina, contada desta maneira porque a inaptidão dela para narrar a própria história é a mesma para resolvê-la. Solucioná-la não enquanto forma ou estilo, mas antes quanto ao epílogo. À pergunta "que fim terás tudo isso?", ela contestaria simplesmente não saber. Quem a mira em sua leveza, porém, não imaginaria; risada lassa e gestos de nanquim, daquelas que aparentam mundos que realmente não existem. Sedução e assombro que somente podem ser produzidos por uma mulher. Entretanto, essa menina, mesmo tão moça, jamais abandonaria sua primeira infância.
Há medos que, todos sabem, ocultam-se dentro de nós mesmos, diferente daqueles comuns como o medo do escuro ou o medo de altura, reproduzidos por meio da equação mais simples – o desconhecido – há aqueles cujas causas são tão destrutivas quanto intangíveis. Era deste último que a narrativa contada por ela se embebia, impregnada de traumas e receios, eram poucos os que compartilhavam deste segredo. A menina tinha um medo inaudito das coisas que, dizia, ocultavam-se sob sua cama. Soava como uma daquelas fábulas criadas em dias solidão, momento daqueles em que o terror nos faz companhia e a ele, alimentamos com ternura.
Um dia, sobre o conforto de sua intimidade, duvidaram sobre a existência daquele gênero de ameaças, como algo tão poderoso poderia sobreviver no esquecimento que o vácuo entre o assoalho de seu quarto e o estrato de sua cama gerava? Pediam-lhe, "deixe-me que olhes e espantes aquilo que te paralisas", a negação à ajuda alheia não era efeito de soberbia ou ingratidão, eram antes desejos íntimos de quem não acreditava naquele exorcismo. Meteram-se sob sua cama apesar das contraindicações e nada encontraram na vastidão daquele breu, apenas um rosto lastimoso, esperando a beirada do encosto, com um segredo inconfessado entre os lábios. Vieram outros heróis a entrada da caverna, armadura reluzente e cavalo branco, mil boas intenções para curar um coração mil vezes repartido, todos contra o mal que se alimentava do escuro. Um monstro que, além de viver alimentando-se de negrume, era também invisível, assim, quem procurava não encontrava e quem sabia encontrá-lo, não o buscava.
O medo já era tão confortável para a menina que, viver sem ele, parecia-lhe como viver outra de si. Outra desconhecida e por isso, igualmente temerosa, então por que abandonar um medo conhecido por um imprevisível? Segui-a lhe como uma sombra, caminhando absorto sob seus próprios passos, como um cego guiado por uma companheira, a quem a via não sabia, entretanto, quem era o cego ou quem era a guia. Um dia me contou como, caminhando, deparou-se com seu reflexo diante da vitrine de uma loja, não eram os sapatos ou os vestidos esbeltos que lhe chamavam a atenção, mas antes sua própria imagem que, sobreposta àquelas cores e publicidades, não a faziam crer no que enxergava. Havia mudado tanto, tão profundamente, quanto os anos de idade jamais poderiam ser responsabilizados. Tinhas diante de si, outra pessoa, charme e doçura de outrora que agora conviviam com o medo de sempre.
Tão inseparável era essa menina de sua face obscura que a fazia ocultar-se de todo foco de luz, precaução contra algo que poderia lhe prejudicar, como quando cerramos nossos olhos em um gesto instintivo após irromperem as luzes em um ambiente escuro, afugentamos a claridade de nossas retinas como ela repelia toda tentativa de aproximação. Seu passeio solitário então se enveredava por um jardim noturno, um labirinto sem luz, conduzida apenas por um chamado, semelhante às miragens de oásis que induzem desesperados em desertos, ele parecia prolongar uma longa viagem até a desaparição, sendo que a última causa para o olvido não era o falso chamado se não a plena escuridão sobre a qual havia mergulhado.
Todos somos feitos de luzes e sombras, essa menina também.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Diálogos

- Melhor, bonito?
- Igual. É uma melancolia tão suave, como a maré calma, sabe? Mas ao mesmo tempo tão profunda como o enjôo daqueles que não conseguem viajar de barco.
- Amar é a maré

segunda-feira, 24 de março de 2014

O menino que não sabia chorar

Era daquelas crianças fortes e saudáveis que não chamam mais atenção a não ser pelo fato de serem sorridentes. Sorrisos tão esgarçados que chegavam a tornar-se sinônimos para a alegria. Todos no bairro se admiravam do quão “bonzinho” era aquele guri. Mesmo cair e ralar o joelho era um ato que despertava riso, então pouco ainda recordava-se do estranhamento do cirurgião responsável pelo parto da criança, quando este não despertou um esperneio de lágrimas no menino que acabara de nascer ao dar-lhe um safanão em suas nádegas. Diagnóstico: criança normal, porém com ausência de pranto.
O menino cresceu com um estigma a qual poucos se davam conta, ele não chorava. Fossem pretextos emocionais ou razões físicas, nada lhe tirava uma lágrima se quer; mesmo quando ria demasiado, seus olhos, tão pouco, lacrimejavam. Ninguém adivinhava a que ordem, moral, psicológica, médica, genética, pertenciam às causas que levavam a este fenômeno. E a verdade é que mesmo os pais, pouco se importavam, afinal houvera sido um sonho passar pela crise dos primeiros anos da maternidade sem os choros noturnos constantes. A criança não era menos sapeca ou arteira, porém as noites eram extremamente silenciosas na casa.
Para a criança parecia ser igualmente uma vantagem, um regalo dos céus, utilizado nos momentos de querelas infantis mais urgentes. Todo indício de dor era insuspeito - naquele coração - um ou dois quartos o tamanho de um adulto, principiava a germinar um orgulho já quase maduro. Quando naquele sábado de manhã rebentou uma peleja no campinho de terra batida da praça do bairro, todos os garotos pensavam ter visto sair sangrando do terreno, um homem com corpo de menino, suas lágrimas eram vermelhas e o respeito era geral. O comentário do dia seguinte na escola, não era outro diziam que ele não sentia dor, a verdade era que ele não sabia dizer como sentia. Havia algo de diferente naquele mancebo, os professores, os vizinhos, os colegas; todos percebiam, entretanto não sabiam atinar para o quê. Já os pais tinham alguns receios, ainda assim, a criança cresceu sem ser incomodada com questões clínicas ou psiquiátricas e jamais duvidaram da existência e funcionamento corretos de suas glândulas lacrimais.
Depois de menino, homem feito, passado a infância e boa parte da juventude sem uma gota de fel, agora adentrava o mundo dos adultos e das grandes preocupações munido apenas de palavras. Aquele que jamais havia chorado estava agora em um mundo aonde chorar não era permitido. Dor e emoção quando expressas eram sinônimos de fraqueza, competição e orgulho vigoravam como valores aos quais a sua natureza lhe havia concedido um benefício estético. Conquanto seu triunfo fosse invejado, a vida, mais do que os homens, havia-lhe ensinado a vã glória de sua mácula. Afinal, as palavras do menino que cresceu poeta por desvio fisiológico, dariam para descargar o peso de um coração impressionado? Queriam que ele chorasse no enterro de sua mãe, porém não conseguiu e tão pouco seu pai viu brilharem seus olhos desde a cama donde permanecia internado. Queria ele chorar? Não sentia dor porque não choravas? Quanto lamento cabia em uma palavra?
Um dia, a existência parou de lhe cobrar lágrimas, não mais elas fariam diferença para quem tão bem manejava as palavras. Na alegria e na tristeza, elas pintavam o quadro das sensações que ele poderia dispor, paisagens infernais e celestes descortinavam da sua língua para o exterior de seu âmago. Até que um dia, ele mesmo deixou de se acreditar, sua dor e seu amor era verdadeiros? Queria chorar, mas não sabia, queria chorar pelo simples fato de que não podia.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Reino dos Encantados

Como disse Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é". A desambiguidade da frase se revela na verdade que ignoramos, o fundo cultural sob o qual se levantou a nação brasileira é indígena, assim, inconscientemente guardamos um mesmo caudal de ideias sobre nosso modus de relação com o mundo e com os outros. Subsiste à padronização comportamental e o ensejo consumista que vigora como arquétipo sobre nossas cabeças, uma raiz que se estende e penetra o interior do continente, um fluxo contínuo de referências etimológicas, medicinais, cosmológicas e estéticas. Apesar da força do processo civilizatórios, o mapa das trocas e transformações das culturas indígenas semeou um terreno fértil para construção de uma estrutura que emerge das maneiras mais inadvertidas e inesperadas possíveis.
Caso desses me foi ofertado aqui em casa certa vez, minha mãe em uma conversa rotineira fez o dito comentário: "...coisa do Reino dos Encantados". Curioso, lhe perguntei da onde havia retirado a expressão 'Reino dos Encantados', ao que ela respondeu que simplesmente ignorava. Verdade é que tal expressão aparece igualmente no discurso cosmológico Mura, população indígena do Rio Madeira na Amazônia, com a qual definem a terra dos Caboclos do Fundo, seres demoníacos que habitam as águas mais profundas dos rios e igarapés pelos quais, todos os dias, essas comunidades cruzam com imensa cautela. Relação que se revela conflituosa dada a hostilidade com que os Mura lidam com os espaços de suas primeiras necessidades, o rio e a floresta, em contraste com o espaço de segurança e tranquilidade da aldeia.
O ponto em questão é a conexão entre o interior em que minha mãe cresceu e se formou e o pensamento ameríndio, instrumental filosófico poderoso e ainda desconhecido. Por mais que as bases de existência e formação tenham sido diferentes, nada estas tem haver com os caminhos que os pensamentos desenham e inventam.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Mulher em hotel no Brás, Cristiano Mascaro



Diante da câmera ela posa sem jeito, apoiada com um dos braços contra a parede, ela satisfaz a vontade de um anônimo que perscruta sua disponibilidade omissa. Esta ali para ele como estará todos os dias para qualquer um. Vemos o tédio e a indiferença em sua expressão e na posta indolente de quem aguarda com obrigação, mas também com esperança. Sobre ela cai a luz de uma das portas entreabertas, uma das tantas outras que compõe um longo corredor de portas entreabertas - todas elas entradas para quartos - único destino sobre o qual se instaura o labirinto da sua vida. Entretanto, a luz que ilumina o cotidiano de seu trabalho, rotina profissional costurada necessariamente no escuro, é também a luz da esperança primitiva, daquela mesma qualidade do foco de luz que alumbra a cabeça de cada novo recém nascido.
O jogo de oposições persiste como anseio da busca por uma saída em um corredor com apenas entradas, um embate entre contrastes em desequilíbrio contínuo. O claro e o escuro, o nascimento e a morte, a saída e a entrada fazem parte da narrativa que envolve fotografada e fotógrafo, todo enredo, então é esboçado na permissiva relação contratada entre ambos por uma módica quantia. O retrato imortalizado não é de um corpo castigado e cenho injustiçado, mas antes da ingenuidade de uma menina-moça que descolore seus projetos de amanhã nos traços infantis do nascer do sol que estampa sua camiseta. Nascimento ou poente, pois até ai, a dúvida se estabelece, como há de ser em um registro mudo de palavras de testemunha e repleto de intencionalidades de fotografo.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser. Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

Tem mais presença em mim o que me falta.

Manoel de Barros


Tenho apenas aquilo que perdi, pois é por perder que finalmente vejo que tem ser, vejo que está dentro de mim. E como tê-la dentro se estas ai, sedutora e reluzente, fora de mim? A vejo, sobressaltado, seus gestos de nanquim como bem vive sem mim. Entretanto, quem esta ai fora já não é quem tenho aqui dentro, bem diferente, como um simulacro de quem ainda tenho presente. Quase apagada, nada se compara ao que eu guardo como joia rara. Ainda assim, vejo o quão difícil é sustentar-se diante de um espelho, vago incerto como um peixe fora do aquário diante do que não tenho por perto. Não é mais ter, é apenas ser. Me sinto um ventríloquo balbuciando palavras que não são minhas, pois a quem quero enganar? A minha presença é aquilo que me mais falta e eu não passo de um velho a me lamuriar. É que esqueço o quão grande eu era quando não me apegava ao ter, mas apenas ao ser, ser dessa infância que se passou quando eu ainda olhava para o chão a cata de tocos de galhos de árvore secos e quebradiços.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Metas poéticas para 2014

Não desviar mais das poças de água e mergulha-las como outrora o fazia, consequentemente tomar banho de chuva mais vezes e deliberadamente. Sorrir depois de retirar os trajes empapados em água de chuva ácida e falar dos rodopios e saltos como uma das mais nobres artes. Afugentar de ti os receios mais maduros e hipocondríacos que sua infância ignorava. Tomar sorvete mais vezes e declarar odes à sensação gélida que aos poucos toma suas papilas gustativas e em razão de experiências banais como esta, declamar mais poesia, dar ares ao verbo, aquela das suas faculdades mais encantadoras. Coletar e pedir por mais pedras, juntá-las aos montes como gemas preciosas das memórias suas e alheias. Olhar e observar mais fotos, admirar-se e comover-se com o mesmo tom das lentes que suas retinas dão a ter. Caminhar mais e preocupar-se menos com as solas de seus tênis, dá-las ao asfalto o agradecimento que tu acumulaste com seus passos e em direção ao horizonte, mirar menos a terra e mais o céu para onde aqueles gigantescos mobiles despontam com formas maravilhosas e efêmeras. Buscar mais oportunidades para dormir ao relento e concretizá-las quando estas aparecem, não somente para contar estrelas ou perscrutar os ruídos da noite, mas também para amar aquela que te amou primeiro, a natureza. Quiçá a janela aberta já lhe baste.
Escrevo para mim, mas também para o outro que o lerá ao fim do ano, uma criatura diferente, mais calejada e menos satisfeita que ousou algum dia ser poeta para elogiar os doces desgostos da vida.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Projeto I: Fotografia

Nossa intenção é a produção de imagens que traduzam o que nossos olhos apreendem como sensações. Sob o foco da lente está o corpo, o corpo enquanto suporte simbólico e material, origem das potencialidades e das crises mais humanas. O corpo em seu limite carnal, desvestido de quaisquer ornamentos culturais, desnudo e absorto em explosões sensoriais plenamente físicas. O corpo oferecido do útero, maturado e construído através de experiências de cunho friccional, substancial e natural.
O corpo enquanto tema tabu, é o fundo para um olhar interessado no limite da transfiguração entre o absurdo e o benquisto. Transfiguração aqui, é entendido como processo cuja conclusão se encontra no ponto limítrofe entre o reconhecido e o desconhecido, - a objetificação do suporte carnal em seu conteúdo puro e formal. Deslocando o corpo de seu campo de batalha primevo, tanto físico quanto simbólico, almejamos alcançar as saliências e ondulações sensíveis de um manancial de formas enternecedoras infinito. Sim, é sobre os irreconhecíveis relevos de músculos e dobras de pele que nos apiedamos quando de frente ao monumento do corpo humano. Pretendemos exaurir, por meio de registros fotográficos, o corpo de seu arquétipo de corpo. O corpo que requisitamos está além do modelo platônico, ele está ali, na suas especificidades comoventes, pois, creditamos à cicatriz o distintivo identitário maior, para além do indivíduo, está a trajetória de um povo.
Ainda sim, nosso trabalho não se encaixa no ramo narrativo, não desejamos desenhar um perfil corporal pessoal e uno. Adentramos antes ao campo das generalidades, pois em nosso projeto visual, há muito de música. Se Alair Gomes chamava às suas séries de sinfonia, tendemos a buscar um caminho semelhante; a atenção generosa sobre esses encadeamentos de formas efêmeras e posicionais deve soar como melodia aos nossos olhos. É ai que encontramos o potencial poético do corpo com o qual nos deitamos. A intimidade logo, surge com um papel primordial, ela, a diplomata e a intermediadora entre o corpo alheio e a câmera.
Para além de seu resultado gráfico, tal pesquisa reflete em seu âmago uma questão antropológica, o corpo enquanto outro, ou para uma melhor exatitude, uma antropologia do corpo. O tom autobiográfico da obra de Louise Bourgeois nos é uma referência quando pensamos na construção substancial e psicológica de nosso próprio corpo, este refém de um pesamento moral e ético pré estabelecido tende a estar enlaçado por justificativas ideológicas que transcendem a própria história de fundação do Ocidente. O que desejamos, no limite, é colocar nossos corpos em conflito com outros corpos, transformar este terreno em uma festa. Para tanto, para comprovar as delícias dos jardins de Bosch necessitamos do registro fotográfico, o vestígio material de nossas composições compartilhadas.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Miro-me no seu limite

Teu corpo como presságio de dores e prazeres, curvas sinuosas que atraem meus olhares para onde se deslocam. Todos os caminhos de sua casa desaguam às praias de seu quarto, ouço seus passos desde os corredores contíguos. Te miro, enquanto ajeita os detalhes mais superficiais de sua maquiagem matutina diante do espelho em movimentos curvilíneos. Lhe como com detalhes, dos pés delicados, avolumando-se por suas coxas até chegarem ao seu bumbum, minha tentação maior. Ancas das quais ainda me quedam memórias táteis que me conduzem pelos meandros seguintes de seu corpo. Monumento de luxúria sobre o qual dedico meus movimentos mais impetuosos e minha retórica mais ardil. Desenho por sobre suas zonas erógenas, seguro seus seio de carne branda enquanto uma sinfonia de deleite preenche os cantos não ocupados do ambiente.
Todas as quatro paredes de seu cômodo pessoal são as vestimentas que nos protegem da desgraça alheia, ali sou convidado de sua intimidade, perdido entre segredos a que pouco tiveram acesso. Sobre uma penumbra fina nossas vozes arfantes ainda comentam a meia hora passada sob risos e elogios. Tantas palavras e tantas escusas dedicadas a merecerem seu trato, vertidas sobre as linhas de seu ventre que me deixam como horizonte seu rosto pedante. Tenho ao fim seu corpo exaurido ao meu lado, aquele sobre o qual continuo desenhando com meus dedos para arrancar-lhe melodias fantasiosas.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Ode ao cajado

Pedaço de pau encontrado sob as sombras de árvores, rés do chão de folhas secas e futura matéria prima de copas gigantescas. Desde lá, elas podem mirar o céu e por isso, pouco irão se preocupar com arbustos menores. Apenas seres diminutos como humanos dariam atenção a gravetos roliços, ou pior, escreveriam odes em sua homenagem. Pois sim, matéria madeira que suportou meu corpo e o conduzio por sobre as pedras, mesmo contundido, suportei a dor da caminhada por sobre o meu cajado. Aquele que como de sorte meu olhos pousaram em momento de descanso e exaustão, foste tu a me socorrer nas horas de passo mais complicado quando até mesmo meus companheiros me abandonavam. Resistiu por sobre solos arenosos, lapidosos e com impulso me colocou por sobre a margem de riachos. Meu terceiro apoio e no qual eu mais confiei, obra da natureza e da fortuna de joelhos doloridos, que a mãe terra faça dele tantos outros para caminhantes tão cansados como eu estive. Renunciei-o sim, largo por sobre a terra não como desprezo pela graça alcançada, mas antes como respeito por seu local de origem. Minha gratidão lhe queda como as digitais efêmeras que lhe imprimi por sobre a casca. Que este seja a sorte de terceiros, da vida, arrancada quando o cortaram, resta um pouco em mim em memória e em sacrifício ofertado com ele.

Diálogos 'mineiros'



- Vamos por aqui.
- Mas o mapa aponta para aquela direção.
- Vai dar no mesmo..
- Então todos os caminhos vão para o mesmo lugar?
- Não. Os caminhos apontam para novas possibilidades.

Fim

Te descreveria com mil detalhes sinestésicos aquelas colinas de claras pradarias que brindavam com aquele céu azul um verde molhado de paladar quase suave. A sensação de cruzar aqueles mares de morros pouco tem a ver com olhá-los desde a janela de automóveis. Mesmo as águas turvas daquele rio, resultado de uma coloração ferrosa, era boas de beber. Te contaria também sobre o baile de andorinhas que nos envolvia como envolvem nuvens, mergulhando e rodopiando aos milhares ao nosso redor, pareciam nos convidar se não estivessem nos hostilizando. Era tantas flores e flores tão formosas, tão atraentes como os pés de roseira que D. Benta cultivava em seu quintal e que as encontrei surpreso depois do amanhecer. Lhe daria com palavras as coisas que vi se meu desejo de que as tivesse contemplado comigo não fosse maior. Talvez em sua companhia as dores físicas não pesassem tanto sobre as minhas costas em momento de contemplar o céu. Então, sinto que vencer a realidade tátil daqueles horizontes com minha retórica pueril seja menos um elogio do que a certeza de detração. Por isso, quero guardá-las comigo como o são e não traduzi-las como as senti.

Além do que, tudo nessa charla são floreios para o que mais importa, não é?

O que importa é livro que escreveria com todas as sensações que tu me fizeste sentir, um livro cuja leitura venceria as noites. Não um romance cavalariço ou um conto daqueles de ninar espíritos inocentes, mas antes, um tomo pleno de sensações táteis, odores característicos e prazeres sexuais. Linhas que desafiariam a madrugada não como nossas conversas infindáveis, mas sim, prenhe de experiências, daquelas que me fizeram sentir-se vivo mais do que eu nem me lembro mais.. Pões um ponto final no livro e eu o queimo com ânsia suicida.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Seu Zé e Dona Maria da Serra do Cipó

É ali, no regaço de uma cozinha humilde que duas singelas figuras nos recebem, permitindo-nos passar, a nós e a quaisquer outros, com passos leves para frear o ranger das tábuas de madeira do assoalho. Um diminuto espaço cuja paredes enegrecidas de carvão o tornam quase claustrofóbico, sensação aliviada apenas pela janela que alcança o pasto e por José e D. Maria cujo conforto se estende através dos gestos tímidos e comentários geniosos sobre o fazer e o ser daquele lugar, a Serra do Cipó, no interior de Minas Gerais. Uma "casa velha" que, como frisava D. Maria, guarda gerações de uma família regulada pelo clima daquela região úmida e fértil. Então, paredes de taipa se tornam tão generosas e calorosas como aqueles que acarinham a todos como a menino Jesus.
Dois senhores de expressão árida e traços calejados, reclusos em um idílio de verdes campos e céus fulgurantes; das dezenas de imagem registradas de seus rostos inexpressivos, roubadas da intimidade de seu lar, não refletem dois corações maiores que a colina sobre a qual repousa suas vidas. Se soam assustados diante de flash, mostram-se muito mais humanos diante de pessoas. Incontáveis devem ser as histórias que aqueles cômodos escuros e contíguos, assim como as paredes forradas de imagens e ícones sacros, devem guardar sobre seu Zé e D. Maria. Um bem entretanto, chama a atenção mais do que qualquer outro, uma foto de moldura rara e oval cujos rostos retratado são jovens, porém também distanciados em um tempo de trajes formais e películas amareladas. Senhores taciturnos da casa que a todos que a penetram os observam. Ali, na parede lateral do primeiro ambiente, parecem zelar pela tranquilidade e paz de um casal de idosos acostumados a receber visitas.