domingo, 22 de dezembro de 2013

De como não ter chance alguma em uma discussão

Quem disse que expressões faciais contorcidas e tons de vozes elevados angariam pontos discussões políticas? Tudo me leva a creditá-los como artifícios de quem tão bem conduz dotes físicos como o faz com lápis de colorir ou goivas para entalhar. A poesia abdica do verbo para encarnar-se em outras linguagens, a poesia assumi aqui uma corporalidade tanto específica como atraente. Então, as palavras envolvem-se entre os meneios de mãos que agitam o ar afoitamente, disputam a atenção como se retórica e plástica se digladiassem. O fio condutor segue por um tronco bem feito até escorregar-se pelas linhas delgadas de suas pernas. Questões políticas, sociais e ideológicas são o nosso fraco, mas também a minha perdição.

"Afinal, seus arroubos feministas não me importam muito. Em suma, tudo aquilo havia sido para me explicar por que ela deixara de se sentir culpada. Bom, isso era o importante, que ela não se acreditasse culpada, que afrouxasse a tensão, que se sentisse à vontade nos meus braços. O resto é adorno, justificação; pode estar ali ou não, para mim tanto faz. Se ela gosta de sentir-se justificada, se transforma tudo isto num grave problema de consciência, e quer comunicá-lo, que que eu tome conhecimento, que a escute dizê-lo, bom, então que o diga e eu escuto. Ela fica linda com suas bochechas acesas pelo entusiasmo."

Mario Benedetti.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Imagens do Inconsciente



haber aprendido
a desnudarme
y aceptar discretamente
que el abono fue
siempre será
doloroso
y nunca se está
en la vida jamás se está
de veras
solo

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Dança de Ninfa e Sátiro

Embrenha-se floresta adentro, distintos estímulos embaralham os sentidos que, entorpecidos, se entregam à quimera. Especula com os passos a terra firme e úmida que envolve seus pés com ramas e folhas, transita entre as árvores com os mesmos movimentos com os quais seus pensamentos fluem inquientos entre si em sua mente, caminhar sempre teve um sentido em si mesmo. Não sabe se tens permissão, apesar de pedido feito, avança sob a suspeita de indiscrição e lhe sobem a mente mil fantasias insólitas. A solidão e o silêncio não existem ali, apenas o breu que lhe cobre com olhos invisiveis; é excitante pensar nas milhares de redes de relações que são disparadas a cada imprecaução de galho partido. Quer passar desapercebido, porém guarda plena consciencia do conhecimento dos outros sobre ele. Tudo ali parece feito da tinta do pincel de um deus que se dedica à pintura do maravilhoso aos domingos.
Ao jogar a vista ao céu, entre as copas de grandes árvores, a lua lhe guarda um rosto amarelo, desconcertada com a tarefa imposta de ser a única a se revelar naquele cenário. Aos poucos aquele corpo frágil se enleva com as mais variadas melodias noturnas. As texturas da floresta não mais lhe pinicam a epiderme e seu desespero inicial diminui o ritmo junto as batidas de seu coração.

- Mesmo eu sou refém de meus set's literários, minhas narrativas transformam-se em prosa poética e insisto tanto nos detalhes que esqueço a história e passo a desejar viver o que escrevo antes de escrever o que vivi.-

Tens a impressão de fazer parte de uma grande cia de dança, teatro ou até circo, toda a revolta desencadeada pelas correntes de ar lhe soam com uma dramaticidade cativante. O frio, condutor principal dos medos mais primordiais, submete-se ao calor dos palcos.
Entre troncos musgosos, surge então, a atriz  principal, quem não estava ali, agora transita como se estivesse de passeio entre cômodos de uma casa. Uma das mais belas ninfas daquele recanto vem lhe receber em seus cantos e como sátiro, aceita o papel que lhe atribuem. Ama-a no interior da depressão de um Jequitibá gigantesco, rosa como os seios da ninfa semi-desnuda, cujos reboliços infindáveis são atenuados apenas por suas mãos que os empunham com grande prazer. Arrasta suas mãos arranhando as coxas da dona de um sorriso pueril e se imposta entre suas pernas fincado suas ferraduras em solo macio. Se amam entre suspiros e feridas e tudo naquele bosque exala perfume de amor e luxúria.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Sentido histórico brasileiro

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!


Castro Alves, Navio Negreiro

Antes de tudo cabe uma ressalva explicativa em relação ao título deste texto. Lanço mão aqui do conceito cunhado por Caio Prado Jr. por duas razões; primeiro, emprego a mesma definição utilizada por ele quando se referia às circunstâncias sociais, político e econômicas que emolduravam o período histórico conhecido como colonização; segundo, afirmo igualmente que minhas crenças analíticas situam as origens deste processo no período primitivo de nossa formação.

A estrutura sobre a qual ergue-se as relações que fundamentam e constroem a nossa sociedade segue um sentido único, o sentido do nosso processo histórico. Sob ele encontraremos não apenas os fatos que ilustram e emolduram nossa identidade histórica, mas nos será dada a via de acesso para a compreensão do caráter de nossa sociedade contemporânea. Somos fruto de discursos e embates físicos que no decorrer de cinco séculos narrativos tingiram a brasileiridade com um tempero específico. As relações que governam o nosso cotidiano, subscritas em um contrato de senso comum, na verdade guardam a força da corrente incontestável e, as vezes tendo a crer em rompantes de pessimismo, inelutável da história.
Reescrever a gênese deste processo não exige uma mirada especializada ou um embasamento documental, exige, simplesmente, sensibilidade em relação aos não-ditos, interditos e gafes projetados pelo nosso inconsciente e traduzidos em nossas ações. Pois digo, não nos eximamos da corrente da história, somos mesmo seus cúmplices em nossos silêncios. A linguagem, como meio de conexão para o outro, revela em seu intimo as relações de poder as quais se submete. As relações estruturais encarnada na hierarquia sem a qual esta sociedade não se sustentaria são expressas e podem ser visualizadas no sistema linguístico, a palavra é entendida aqui como signo ideológico, já bem havia dito Mikhail Bakhtin. Assim, a palavra não funciona como mascaramento da práxis cotidiana, antes, para além da sua representação, ela a reafirma permanentemente.
A principal marca identitária de nossa formação se encontra fundamentalmente no sistema escravista, quatro séculos de manutenção do regime de exploração de trabalho humano que arregimentava em sua organização castigos físicos e discursos ideológicos nos legaram um modelo de relação ao qual estamos até hoje, intrínseca e inconscientemente, associados. A violência, presente na supressão do direito humano à liberdade e em suas justificativas jurídicas e ideológicas, era não somente pedra angular do sistema escravista, mas peça chave das regras que administram os mecanismos de formação e controle atuais.
A violência é verbal e simbólica, seja exprimida em uma ordem não-contestável ou em uma ameaça inadvertida como na bem conhecida expressão "vc. sabe com quem esta falando?" ou na massacrante rotina suportada pelas massas trabalhadoras rotineiramente nas grandes metrópoles, porém ela é igualmente doutrinária quando impregna a mente coletiva com discursos liberais relacionados ao direito de ir e vir, as teorias que relacionam o sucesso com o esforço individual como no mito do selfmadmen, as promoções da sorte vendida a varejo e claro, no maior monumento ideológico do Ocidente, o direito à propriedade, e, consequentemente, seu maior crime, bem havia dito Rousseau. É sob direito à propriedade que se salvaguardou o escravismo no Brasil, viola-lo era prejudicial à própria liberdade, defendia-se nestas terras à duzentos anos em discursos inflamados. Sermões registrados em papéis como também o foram registrados em filme fotográficos os rostos de constrangimento e rebeldia dos cativos das últimas décadas da escravidão no vale do paraíba fluminense e paulista, na Bahia, em Recife e em tantos outros lugares por Marc Ferrez, George Leuzinger ou Cristiano Jr. etc. Por fim, a violência é física, como atesta a morte do menino Douglas Rodrigues por policiais e a onda de protestos seguidos à manhã do outro dia na zona norte de São Paulo, nada ela tem de inocente ao paralelo que traçamos com o espancamento de Rodney King em Los Angeles no ano 1992.
A violência, monopólio do Estado moderno, é condenável não por sua ilegalidade, mas pela reatividade que lhe é inata. Contestar é apenas uma direção a se voltar na via contrária do processo histórico e sociológico brasileiro, fundado sobre a estigma da violência, sentencia a como irracional em seu juízo oficial e público. Os dispositivos de controle governamental se antes estavam nos olhos dos feitores que tudo viam ou nas câmeras públicas de vigilância, agora também compõe as críticas divulgadas nas bocas de nossos concidadãos. Fabianos dispostos a contestar somente a violabilidade de seus metros cúbicos através de resmungões e burburinhos. Ainda assim, que nego que o constrangimento e a rebeldia imemoriais desta "legião de homens negros como a noite" não perdeu seu acento tão pouco sua cor nos dias de hoje? É isto, um abismo se avulta sob nós.

"Paz é coisa de rico."

Viagem de trem, metáfora para a vida.

Meu corpo sacode sobre o ritmo cadenciado do vagão, enquanto miro a paisagem tediosa através das janelas tento limpar meu peito dos pesares tão meus quanto do mundo. Respiro fundo porque aquilo que congestiona minha respiração quase sai boca a fora e me faz pensar o quão egoísta é tentar digerir o desespero alheio. Tudo soa como metáfora para esse árduo fardo da vida, minha garota recosta sua cabeça sobre meu ombro e as poucos o peso sobre meu dorso torna-se menos insuportável. A locomotiva segue o caminho dado pelos trilhos e eu quero apenas desfrutar da viagem. A paisagem tediosa destes subúrbios e suas luminárias de mercúrio aos poucos tornam-se céus iluminados como os de Van Gogh e as notas metálicas produzidas pelo atrito das rodas de ferro se assemelham quase à gaita de Bob Dylan. Sou mais um passageiro, o balanço do trem carrega meu corpo e meus pensamentos são novamente parte do mundo. Meu compromisso com a realidade não está dado e se há algum ele me será apresentado aos poucos, parada à parada, como as estações dessa linha. Todo conforto que seus beijos me dão é muito mais do que um homem pode desejar, talvez todas as ambições humanas pouco tenham de verdade se comparadas as singelas promessas que a humildade de seu lar me ofertam.
A próxima estação já não é mais a minha, confundo caminho com destino e minha mente cansada não é mais responsável do que o meu desejo de que este trem não termine sua viajem jamais. É como naquela velha história sobre a folha seca, minha alegoria mais querida, encontro minha paz e meus significados mais preciosos no deslocamento. Digo isto e então, me lembro como uma lembrança sonora da frase "el camino no es camino" e por fim chegamos em nosso ponto de chegada.

sábado, 28 de setembro de 2013

Ditadora das Cores

A Ditadora das Cores mantinha um dispositivo de visualização e apreensão regrado e disciplinado em relação à classificação das cores. Conhecida entre seus iguais como Madame Dégradé, residia em uma fortaleza transparente, a Casa de Vidro, da qual estabelecia um violento sistema de vigilância sobre as cores do mundo. Vestia-se em sua paleta de cores cujas anáguas da saia a tornavam volumosa e visível a toda Corte. A gola ampla, caída sobre os ombros, criava um claro contraste entre sua pele de um branco tênue sobre o circulo cromático que avançava sobre os tecidos e rendas de suas vestes. Seu desfile diário descendendo desde as escadas circulares de sua torre particular, localizada à grande altura, até a sala do trono, sustentavam um ritual de sacralização de sua imagem e de padronização da recepção e percepção coletiva dos fótons através das retinas alheias.
A Corte, branca em seus trajes de renda e seda, refletia os desejos e aspirações daquela que portava como cetro, o único prisma de cristal do reino. Seu Gradiente, enquanto constituição outorgada, fazia-se conhecer como lei através da Guarda Tonal e da fiscalização panóptica que as paredes de seu castelo impostavam. Eram proibidos todos os lápis de cor e tintas coloridas, qualquer infração deste nível era brutalmente reprimida com a prisão e a cegueira, pena capital naquele rincãozinho do mundo.
As histórias daqueles que resistiam eram conhecidas – descoloridas em seu silêncio – ainda se faziam ver desenhadas em blocos de papel com o preto e o branco. Neles, em linhas tímidas, retratavam-se o contrabando de canetinhas vindas de terras distantes e os piches multicores amanhecidos sobre as paredes das casas, fruto de distúrbios noturnos, rapidamente apagados pela corja de serviçais que trabalhavam a favor da boa moral, da ética e da composição comportada das cores. A Guarda Tonal ou "boçal", como eram conhecidos pelos plebeus comuns, era composta por brutamontes encouraçados com armadura de ferro enegrecido, mesmo a íris de suas membranas oculares não destoavam daquele padrão acromático, cuja única função era salvaguardar o monopólio das cores mantido pelo Estado e pela autoridade da Ditadura, desafiada somente pela natureza e pelo arco-íris que cotidianamente irrompia sob os céus.
Àqueles que jamais tinham escutado sobre Governo e Constituição parecida, lhe soará disparate maior quando tiverem conhecimento sobre o estatuto da música naquele mundo. Atividade proibida e taxada das mais subversivas, sua condição marginal era justificada no juízo posto pelos discursos diários publicados e divulgados pela assessoria de impressa do castelo. Segundo razão da própria Madame Dégradé, a relação íntima que subsistia entre a escala tonal e a escala das cores tornavam a primeira, uma influencia extremamente perniciosa para a educação e formação de seus súditos. Visto que, a tradução subjacente à relação de ambas abria um precedente para o exercício e o estímulo do livre arbítrio. Apenas a sugestão, as medidas coibitivas do Estado revelavam essa doutrina, da existência da capacidade de interpretar inerente à própria estrutura de apreensão sensorial humana impedia qualquer projeto ideológico de Nação, necessário não somente para o equilíbrio mental e físico da população, mas, mormente para a manutenção de uma ordem social, política e econômica pré-existente à própria sociedade.
Porém, todos o sabem, toda ordem imposta é uma farsa, uma fantasia de mentes prepotentes baseada em conceitos estéreis, dispostos a domesticar o mundo e a limitar a relação com o mesmo. Os habitantes daquela região tinham suas ações restringidas e veladas, mas seus aparelhos de recepção fugiam à regra; e da mente, cujas janelas eram as vista para o universo, frutificavam poesias. Afinal, a compreensão das cores é idiossincrática e sua recepção é apenas a primeira etapa de um processo que envolve em seu desenvolvimento, a bagagem e as experiências pessoais de cada indivíduo. Tudo isso, Madame Dégradé bem o sabia, era demasiadamente perigoso, pois sempre dizia aos conselheiros: "em toda caixa de lápis de cores há um traço rebelde e todo buque de flores é potencialmente um buquê de Esperitina Martins". O que não haviam contestado à Rainha de Copas do País das Cores era tão somente, o quão ridícula a viam através daquelas muralhas transparentes em sua indumentária confeccionada pelo grande estilista Kaspar Faber.

sábado, 31 de agosto de 2013

Sintonia para pressa e presságio

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Paulo Leminski

Imprime sobre sua epiderme um desenho com seus dedos, rasura imperfeições e sublinha os traços que mais lhe interessam. Desliza sobre ela para espraiar-se em suas largas planícies, explorando em seu recônditos mais sensíveis seus desejos mais prementes. Emparelham suas vistas e ali encontram a chave de acesso de  pensamentos silenciados, um turbilhão de dúvidas pulula a atmosfera do quarto. Deseja ler sua pele assim como anseia conhecer grandes escritores. À meia luz seus corpos permanecem em repouso, as pernas de ambos emaranhadas aproximam os sexos latejantes e úmidos, o ocaso da condição física de que dispunham denuncia o ardor de dois amantes. Em seu semblante sereno ainda ressoa as imagens sinestésicas que a colocaram sobre ele, montada sobre seu quadril, em um movimento compulsivo e delirante que a fazia refastelar-se com seu sexo. Penetra-a. O choque entre as duas virílias ecoava seco pelo quarto mudo. Mantinha os seios dela comprimidos em suas mãos enquanto admirava a possessão do prazer em sua expressão. Como asfixiada mergulhava e se afogava em sua própria ventura sexual até o apogeu jogá-la contra seu tronco quase imóvel. Senti-a com carinho sobre seu peito e percebi as ondas que o seu gozo haviam provocado percorrerem seu corpo em espasmos cada vez mais enfraquecidos. Ambos estavam ali, mas tão pouco estavam. Quer de novo senti-la em seu gosto acre com o dedo indicador e quer de novo que ela o chupe para compartilharem do mesmo sabor.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Caché (Hidden)




Um jogo dúbio entre externo e interno é posto em cena produzindo como efeito uma inversão. Inverte-se a posição do dispositivo de controle, se antes ele convergia para o centro, enredando o coletivo social sob a autoridade do Estado, agora ele nasce do centro como produto inconsciente do ego agindo sobre o universo individual. É sobre a coexistência de sentidos opostos no fluxo da rede que conecta a sociedade aos indivíduos que o filme Caché (Hidden) de 2005 aborda. Dirigido por Michael Haneke, ele é uma coprodução entre quatro países, França, Áustria, Alemanha e Itália; cuja história narra o drama de uma família de classe média alta que passa a receber gravações de sua própria casa registrando a rotina de seus moradores e estranhos desenhos infantis de crianças sangrando.
A sobreposição dessas redes apontam para fatos compartilhados, o filme de Haneke não trata apenas de um misterioso drama pessoal de difícil solução, ele imerge sobre a construção da sociedade francesa tensionada por narrativas nacionais distintas e silenciadas, cicatrizes das quais a exposição atestam conflitos ainda não olvidados. Todos conhecemos a composição multi-étnica da população francófona, fruto de uma passado colonista e imperialista que sobre um mesmo solo vingou memórias argelinas, senegalesas, camaronesas, judias, [...] de litígios sangrentos e prementes. Assim marca, a metáfora posta pelo encontro entre o personagem George, encenado pelo ator Daniel Auteuil, com o ciclista de ascendência afrofrancofona no meio da rua. A intervenção da esposa de Geroge "- Vc não estava olhando, nem ele estava olhando, ninguém tem culpa de nada..", não foi o suficiente para eliminar a tensão social de um século e meio de injustiça migratória. Para todos os efeitos, a lição de perspectiva histórica nos dada pelo povo Piro, habitantes do baixo Urubamba na Amazônia peruana, de que não importa de quem é a culpa, mas antes deve buscar-se saber onde tudo começou tem aplicação legítima sobre essa questão. Igualmente não importa o autor das fitas cacetes anônimas, a indagação a qual a película se presta é sobre a ligação entre crises de consciência de extremidades distintas, individual e estatal, a injustiça cometida por um menino de 6 anos é produto do Massacre de Paris de 1961 sobre a marcha organizada pela Frente de Libertação Nacional argelina segundo uma teoria do caos de coloração neocolonialista.
Vigiar e punir de Michel Foucault (1975) aqui assume um tom revanchista e egóico - o foco centrífugo do dispositivo de controle sobrepõe-se ao centrípeto - não se trata diretamente da injustiça do crime de genocídio sobre a consciência de uma nação, mas pura e simplesmente do caso da morte de homem suportada pela consciência de outro. Esses são os valores e as reminiscências legadas de herança para as novas gerações que descem ruidosamente as escadarias dos colégios franceses.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Flautas de Pã

Antes de escrever sobre o amor prefiro escrever sobre a vida, da qual a primeira é apena uma ínfima parte da segunda - a qual eu não faço a mínima idéia do que seja - mas já ando desconfiado de saber.

"Um meio de obter é não procurar,
um meio de ter é o de não pedir
e somente acreditar
que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – meu mistério."

Menina cujo peso dos passos reverbera em curtas ondas sobre a superfície da agua; menina cujo tom de voz acompanha as notas das flautas de pã tocadas à beira do lago e entremescladas à aragem fresca. É noite de festa e a clareira de um bosque desconhecido se ilumina, nos olhos dessa menina vemos refletida a dança e a música daquelas criaturas mitológicas. As ninfas das árvarores e das águas a convidam para compartilhar de um mesmo ritmo, pois está ai, toda a paixão de um botão que desabrocha e descobre os prazeres da vida ao lado de Efidríades, Hamadríades, Faunos e tantos outros. Vêem em seu largo sorriso todos os mistérios do mundo, toda a curiosidade de Pandora.  Aquele encanto entre o "não saber porque" e o "não se importar com isso de não entender" toma-a em uma única torrente, lavando seu corpo, aos poucos desnudado das vergonhas terrenas. Seios de cor alva que à luz da lua balançam sem candeio e com tão pouca candura. Entrega-te ao caminho, pois tudo o que há na vida são caminhos e eles te levam para todas as partes basta não eleger.

sábado, 30 de março de 2013

Lavoura Arcaica

Saio da terra sobre a qual me ergui, da qual sorvi os nutrientes necessários paa minha sustentação e crescimento. Dela meus irmãos encontraram uma mesma origem e como eles, meus pais e os pais de meus pais semearam o fruto que hoje colhemos. Com o suor do trabalho e a orientação de sermões e preces construi-se a casa na qual moramos e da qual tiramos nosso abrigo contra as intempéries do clima e da gente. Ali aonde compartiamos o pão produzido com matéria de nosso labor fomos formados enquanto ser humanos; educados ao modos da lei e da fé. A tradição fluídas pelas palavras de nossos pais não era mais do que um surdo reverberamento da civilização que nos envolvia desde paragens alheias. Dia a dia essas homílias patriarcais nos conceberam a verdade na qual deveríamos acreditar e enquanto luz, era a única que poderia nos guiar. Refeição após refeição escutavamos as pregas a favor do trabalho e da família, de Deus e de nossa terra, sobre elas cristalizaram-se minha tenra visão de mundo. A elas respeitava porque temia a voz austera e as vezes tronitoante de nosso pai, quem à cabeceira da mesa e barba volumosa, nos revelava os mistérios da vida. Minha mãe e meus irmãos dispostos a sua vista aceitavamos sem refletir ou questionar. A saúde de todos era plena e a mesa farta atendia a necessidade de cada um após uma árduo e longa jornada de lavoura. Haveria algo mais a se rogar àqueles que nos protegiam contra os males terrenos e etéreos? O tempo era bom e nada nos faltava, principalmente ao meu sutil e inocente espírito que se animava com a perspectiva de caminhar sob a luz do sol com meus pés descalços sobre as folhas secas e banhar me desnudo às águas cristalinas do lago.
Então, me perguntas por que abandono os seios da mãe que me criou e amamentou castamente durante tantos anos? Porque entregar-se ao alvorecer de uma nova fase da vida aos augidos de uma saara distante e desconhecida? Parto pelo sabor das palavras e pelo entusiasmo de experiências que me foram negadas e ocultas. Viajo em busca da luxúria da carne e do vício. Será o vinho vazando pelos meus poros que me permitiram cultivar o obceno ou, como em tantos momentos eu o alcunhei, minha liberdade. O homem não se faz sozinho, bem o sabemos, mas tão pouco se faz em um lugar só, por isso minha ansia pelas estradas, meu destino vagabundo de vagar pelo mundo. É somente por meio desse desejo que justifico a furia com a qual abandonei minha família.
Entranto, digo, após muitos anos de meu adeus mudo, as pequenas lições dadas pela minha infancia, as nobres reminiscências criadas pela correria pelos salões claros de nossa casa não foram plantados em chão de terra batida, pedregulho ou espinhos. Guardo comigo a sapiência de uma vida, assim como levo em meu peito os lugares pelos quais passei. Com convicção dito que não há amor sem liberdade como em toda a palavra, mesmo as censuradas existem grãos graudos passíveis de serem sembrados. E se acaso ditraÍdo me perguntas: pra onde estamos indo? Estamos indo sempre pra casa.