Era daquelas crianças fortes e
saudáveis que não chamam mais atenção a não ser pelo fato de serem sorridentes.
Sorrisos tão esgarçados que chegavam a tornar-se sinônimos para a alegria.
Todos no bairro se admiravam do quão “bonzinho” era aquele guri. Mesmo cair e
ralar o joelho era um ato que despertava riso, então pouco ainda recordava-se
do estranhamento do cirurgião responsável pelo parto da criança, quando este
não despertou um esperneio de lágrimas no menino que acabara de nascer ao
dar-lhe um safanão em suas nádegas. Diagnóstico: criança normal, porém com
ausência de pranto.
O menino cresceu com um estigma a
qual poucos se davam conta, ele não chorava. Fossem pretextos emocionais ou
razões físicas, nada lhe tirava uma lágrima se quer; mesmo quando ria demasiado,
seus olhos, tão pouco, lacrimejavam. Ninguém adivinhava a que ordem, moral,
psicológica, médica, genética, pertenciam às causas que levavam a este
fenômeno. E a verdade é que mesmo os pais, pouco se importavam, afinal houvera
sido um sonho passar pela crise dos primeiros anos da maternidade sem os choros
noturnos constantes. A criança não era menos sapeca ou arteira, porém as noites
eram extremamente silenciosas na casa.
Para a criança parecia ser
igualmente uma vantagem, um regalo dos céus, utilizado nos momentos de querelas
infantis mais urgentes. Todo indício de dor era insuspeito - naquele coração -
um ou dois quartos o tamanho de um adulto, principiava a germinar um orgulho já
quase maduro. Quando naquele sábado de manhã rebentou uma peleja no campinho de
terra batida da praça do bairro, todos os garotos pensavam ter visto sair
sangrando do terreno, um homem com corpo de menino, suas lágrimas eram
vermelhas e o respeito era geral. O comentário do dia seguinte na escola, não
era outro diziam que ele não sentia dor, a verdade era que ele não sabia dizer
como sentia. Havia algo de diferente naquele mancebo, os professores, os
vizinhos, os colegas; todos percebiam, entretanto não sabiam atinar para o quê.
Já os pais tinham alguns receios, ainda assim, a criança cresceu sem ser
incomodada com questões clínicas ou psiquiátricas e jamais duvidaram da
existência e funcionamento corretos de suas glândulas lacrimais.
Depois de menino, homem feito,
passado a infância e boa parte da juventude sem uma gota de fel, agora
adentrava o mundo dos adultos e das grandes preocupações munido apenas de
palavras. Aquele que jamais havia chorado estava agora em um mundo aonde chorar
não era permitido. Dor e emoção quando expressas eram sinônimos de fraqueza,
competição e orgulho vigoravam como valores aos quais a sua natureza lhe havia
concedido um benefício estético. Conquanto seu triunfo fosse invejado, a vida,
mais do que os homens, havia-lhe ensinado a vã glória de sua mácula. Afinal, as
palavras do menino que cresceu poeta por desvio fisiológico, dariam para
descargar o peso de um coração impressionado? Queriam que ele chorasse no
enterro de sua mãe, porém não conseguiu e tão pouco seu pai viu brilharem seus
olhos desde a cama donde permanecia internado. Queria ele chorar? Não sentia
dor porque não choravas? Quanto lamento cabia em uma palavra?
Um dia, a existência parou de lhe
cobrar lágrimas, não mais elas fariam diferença para quem tão bem manejava as
palavras. Na alegria e na tristeza, elas pintavam o quadro das sensações que
ele poderia dispor, paisagens infernais e celestes descortinavam da sua língua
para o exterior de seu âmago. Até que um dia, ele mesmo deixou de se acreditar,
sua dor e seu amor era verdadeiros? Queria chorar, mas não sabia, queria chorar
pelo simples fato de que não podia.