A história destas linhas, escrita
em terceira pessoa, é sobre uma menina, contada desta maneira porque a
inaptidão dela para narrar a própria história é a mesma para resolvê-la.
Solucioná-la não enquanto forma ou estilo, mas antes quanto ao epílogo. À pergunta
"que fim terás tudo isso?", ela contestaria simplesmente não saber.
Quem a mira em sua leveza, porém, não imaginaria; risada lassa e gestos de
nanquim, daquelas que aparentam mundos que realmente não existem. Sedução e
assombro que somente podem ser produzidos por uma mulher. Entretanto, essa
menina, mesmo tão moça, jamais abandonaria sua primeira infância.
Há medos que, todos sabem,
ocultam-se dentro de nós mesmos, diferente daqueles comuns como o medo do
escuro ou o medo de altura, reproduzidos por meio da equação mais simples – o
desconhecido – há aqueles cujas causas são tão destrutivas quanto intangíveis.
Era deste último que a narrativa contada por ela se embebia, impregnada de
traumas e receios, eram poucos os que compartilhavam deste segredo. A menina
tinha um medo inaudito das coisas que, dizia, ocultavam-se sob sua cama. Soava
como uma daquelas fábulas criadas em dias solidão, momento daqueles em que o
terror nos faz companhia e a ele, alimentamos com ternura.
Um dia, sobre o conforto de sua
intimidade, duvidaram sobre a existência daquele gênero de ameaças, como algo
tão poderoso poderia sobreviver no esquecimento que o vácuo entre o assoalho de
seu quarto e o estrato de sua cama gerava? Pediam-lhe, "deixe-me que olhes
e espantes aquilo que te paralisas", a negação à ajuda alheia não era
efeito de soberbia ou ingratidão, eram antes desejos íntimos de quem não
acreditava naquele exorcismo. Meteram-se sob sua cama apesar das contraindicações e nada encontraram na vastidão daquele breu, apenas um rosto
lastimoso, esperando a beirada do encosto, com um segredo inconfessado entre os
lábios. Vieram outros heróis a entrada da caverna, armadura reluzente e cavalo
branco, mil boas intenções para curar um coração mil vezes repartido, todos
contra o mal que se alimentava do escuro. Um monstro que, além de viver
alimentando-se de negrume, era também invisível, assim, quem procurava não
encontrava e quem sabia encontrá-lo, não o buscava.
O medo já era tão confortável
para a menina que, viver sem ele, parecia-lhe como viver outra de si. Outra
desconhecida e por isso, igualmente temerosa, então por que abandonar um medo
conhecido por um imprevisível? Segui-a lhe como uma sombra, caminhando absorto
sob seus próprios passos, como um cego guiado por uma companheira, a quem a via
não sabia, entretanto, quem era o cego ou quem era a guia. Um dia me contou
como, caminhando, deparou-se com seu reflexo diante da vitrine de uma loja, não
eram os sapatos ou os vestidos esbeltos que lhe chamavam a atenção, mas antes
sua própria imagem que, sobreposta àquelas cores e publicidades, não a faziam
crer no que enxergava. Havia mudado tanto, tão profundamente, quanto os anos de
idade jamais poderiam ser responsabilizados. Tinhas diante de si, outra pessoa,
charme e doçura de outrora que agora conviviam com o medo de sempre.
Tão inseparável era essa menina
de sua face obscura que a fazia ocultar-se de todo foco de luz, precaução
contra algo que poderia lhe prejudicar, como quando cerramos nossos olhos em um
gesto instintivo após irromperem as luzes em um ambiente escuro, afugentamos a
claridade de nossas retinas como ela repelia toda tentativa de aproximação. Seu
passeio solitário então se enveredava por um jardim noturno, um labirinto sem
luz, conduzida apenas por um chamado, semelhante às miragens de oásis que
induzem desesperados em desertos, ele parecia prolongar uma longa viagem até a
desaparição, sendo que a última causa para o olvido não era o falso chamado se
não a plena escuridão sobre a qual havia mergulhado.
Todos somos feitos de luzes e
sombras, essa menina também.