quinta-feira, 24 de abril de 2014

Menina no Escuro



A história destas linhas, escrita em terceira pessoa, é sobre uma menina, contada desta maneira porque a inaptidão dela para narrar a própria história é a mesma para resolvê-la. Solucioná-la não enquanto forma ou estilo, mas antes quanto ao epílogo. À pergunta "que fim terás tudo isso?", ela contestaria simplesmente não saber. Quem a mira em sua leveza, porém, não imaginaria; risada lassa e gestos de nanquim, daquelas que aparentam mundos que realmente não existem. Sedução e assombro que somente podem ser produzidos por uma mulher. Entretanto, essa menina, mesmo tão moça, jamais abandonaria sua primeira infância.
Há medos que, todos sabem, ocultam-se dentro de nós mesmos, diferente daqueles comuns como o medo do escuro ou o medo de altura, reproduzidos por meio da equação mais simples – o desconhecido – há aqueles cujas causas são tão destrutivas quanto intangíveis. Era deste último que a narrativa contada por ela se embebia, impregnada de traumas e receios, eram poucos os que compartilhavam deste segredo. A menina tinha um medo inaudito das coisas que, dizia, ocultavam-se sob sua cama. Soava como uma daquelas fábulas criadas em dias solidão, momento daqueles em que o terror nos faz companhia e a ele, alimentamos com ternura.
Um dia, sobre o conforto de sua intimidade, duvidaram sobre a existência daquele gênero de ameaças, como algo tão poderoso poderia sobreviver no esquecimento que o vácuo entre o assoalho de seu quarto e o estrato de sua cama gerava? Pediam-lhe, "deixe-me que olhes e espantes aquilo que te paralisas", a negação à ajuda alheia não era efeito de soberbia ou ingratidão, eram antes desejos íntimos de quem não acreditava naquele exorcismo. Meteram-se sob sua cama apesar das contraindicações e nada encontraram na vastidão daquele breu, apenas um rosto lastimoso, esperando a beirada do encosto, com um segredo inconfessado entre os lábios. Vieram outros heróis a entrada da caverna, armadura reluzente e cavalo branco, mil boas intenções para curar um coração mil vezes repartido, todos contra o mal que se alimentava do escuro. Um monstro que, além de viver alimentando-se de negrume, era também invisível, assim, quem procurava não encontrava e quem sabia encontrá-lo, não o buscava.
O medo já era tão confortável para a menina que, viver sem ele, parecia-lhe como viver outra de si. Outra desconhecida e por isso, igualmente temerosa, então por que abandonar um medo conhecido por um imprevisível? Segui-a lhe como uma sombra, caminhando absorto sob seus próprios passos, como um cego guiado por uma companheira, a quem a via não sabia, entretanto, quem era o cego ou quem era a guia. Um dia me contou como, caminhando, deparou-se com seu reflexo diante da vitrine de uma loja, não eram os sapatos ou os vestidos esbeltos que lhe chamavam a atenção, mas antes sua própria imagem que, sobreposta àquelas cores e publicidades, não a faziam crer no que enxergava. Havia mudado tanto, tão profundamente, quanto os anos de idade jamais poderiam ser responsabilizados. Tinhas diante de si, outra pessoa, charme e doçura de outrora que agora conviviam com o medo de sempre.
Tão inseparável era essa menina de sua face obscura que a fazia ocultar-se de todo foco de luz, precaução contra algo que poderia lhe prejudicar, como quando cerramos nossos olhos em um gesto instintivo após irromperem as luzes em um ambiente escuro, afugentamos a claridade de nossas retinas como ela repelia toda tentativa de aproximação. Seu passeio solitário então se enveredava por um jardim noturno, um labirinto sem luz, conduzida apenas por um chamado, semelhante às miragens de oásis que induzem desesperados em desertos, ele parecia prolongar uma longa viagem até a desaparição, sendo que a última causa para o olvido não era o falso chamado se não a plena escuridão sobre a qual havia mergulhado.
Todos somos feitos de luzes e sombras, essa menina também.

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