quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
Placebo azul, Félix Gonzalez-Torres
Um tapete azul estendido rente e sobre o chão, composto por centenas de balas de menta ou simplesmente doces que envolvidos em embrulhos de celofane azul conformavam um retângulo delgado de 130 kg. Um ambiente que não podia inspirar nada mais do que desejos furtivos e tolos de reminiscências pueris, uma sensação branda e benigna invadia aquele espaço, a princípio, pertencente ao universo infantil. Mas algum de vcs aqui já sentiu uma paixão? Sim, uma paixão daquelas que arrebata e anula o raciocínio, atrai e monopoliza os sentidos? Como um fogo que arde e não se vê, uma ferida que dói e não se sente, esse descontentar-se de contente; algo que não te faz pensar a ser não como parte um de duplo cindido, um corpo uno divido pelas vissitudes da vida - separações que podem ser tanto de ordem geográfica ou mesmo mortal. Alguem já sentiu uma paixão assim?
Sim, essa formação volumosa e homogênia que atiça o pecado da gula também toca a um âmago ferido. Felix Gonzalez-Torres, artista plástico cubano nascido em Guantanamo e erradicado em Los Angeles trabalha com o sentimento da perda, uma ausência insoluvel, que é passível de criar laços de indentificação em todos nós. Placebo, do latim placere, quer dizer "agradarei" e é utilizado como denominação do fármaco que apresenta efeitos terapêuticos devido à reação fisiológica da crença do paciente de que está a ser tratado, ou seja, um falso remédio que atua apenas em nível psicológico. O sentimento de perda do qual o artista fala nasce de uma referência pessoal, o parceiro da sua vida,Ross. Entretanto, essa perda particular, torna-se universal a partir da relação de agrado com o público que é agraciado com possibilidade de retirar uma bala, ou melhor, um pedaço em nível simbólico da união de corpos unidos em vida e emoldurados na experiência daquele lugar sagrado.
É sugestivo pensar nesta obra que funciona sob o conceito da estética relacional como a partilha de uma dor que nunca pôde ser obliterada através do agrado singelo pequenos doces. Dessa forma, essa balas continuam sendo expostas pelo mundo e seguirão como um ritual funerário de preenchimento de uma perda que não tem fim.
Entre os povos indígenas amazônicos existe uma particularidade ritual no hábito da alimentação, especificidade que é traduzida pela antropologia como comensalismo (que pouco tem a ver com a relação de equivalência da biologia). Esse termo traduz o ato de comer junto como um processo de afinização, ou seja, nós tornamo-nos parentes a partir do momento em que sentado ao redor desse retangulo perfeito, que tanto pode remeter a uma mesa como ao buraco de uma cova, e banqueteamos com o que nos é oferecido. A distância entre um e o outro aqui é eliminada, não existem mais estranhos e somente iguais. Da mesma forma, pensamos na relacão com seus mortos dos povos de língua pano também da Amazônia que tem como costume aleofagia, ou seja, o consumo da carde de seus parentes falecidos em um processo funerário. Embargados e chorosos estes comem em comunhão a carne de seus entes queridos desejosos de afastar o próprio espírito do morto que está preso ao sangue do cadáver e retorna contantemente ao seu local de origem para trazer consigo seus parentes ainda vivos de quem sente tamanha saudade. Como disse a antropóloga Manuela Carneiro Cunha: "há pois algo em comum entre os termos de afinidade e os termos dos mortos. Isso parece ser o reflexo de algo comum que existe, também entre o comportamento para com os afins e o comportamento para com os mortos."
Naquela sala de paredes brancas e inundada pelas memórias de um indivíduo que dividia das suas e recebia a dos outros, todos eramos parte de um mesmo grupo de substâncias, os vivos e os mortos, mantidos coesos pelos discurso conceitual da obra, pelos desejos dissimulados e inocentes, pelo peso compartilhado, pelos lacos de parentesco temporário.
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