Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! Castro Alves, Navio Negreiro
Antes de tudo cabe uma ressalva explicativa em relação ao título deste texto. Lanço mão aqui do conceito cunhado por Caio Prado Jr. por duas razões; primeiro, emprego a mesma definição utilizada por ele quando se referia às circunstâncias sociais, político e econômicas que emolduravam o período histórico conhecido como colonização; segundo, afirmo igualmente que minhas crenças analíticas situam as origens deste processo no período primitivo de nossa formação.
A estrutura sobre a qual ergue-se as relações que fundamentam e constroem a nossa sociedade segue um sentido único, o sentido do nosso processo histórico. Sob ele encontraremos não apenas os fatos que ilustram e emolduram nossa identidade histórica, mas nos será dada a via de acesso para a compreensão do caráter de nossa sociedade contemporânea. Somos fruto de discursos e embates físicos que no decorrer de cinco séculos narrativos tingiram a brasileiridade com um tempero específico. As relações que governam o nosso cotidiano, subscritas em um contrato de senso comum, na verdade guardam a força da corrente incontestável e, as vezes tendo a crer em rompantes de pessimismo, inelutável da história.
Reescrever a gênese deste processo não exige uma mirada especializada ou um embasamento documental, exige, simplesmente, sensibilidade em relação aos não-ditos, interditos e gafes projetados pelo nosso inconsciente e traduzidos em nossas ações. Pois digo, não nos eximamos da corrente da história, somos mesmo seus cúmplices em nossos silêncios. A linguagem, como meio de conexão para o outro, revela em seu intimo as relações de poder as quais se submete. As relações estruturais encarnada na hierarquia sem a qual esta sociedade não se sustentaria são expressas e podem ser visualizadas no sistema linguístico, a palavra é entendida aqui como signo ideológico, já bem havia dito Mikhail Bakhtin. Assim, a palavra não funciona como mascaramento da práxis cotidiana, antes, para além da sua representação, ela a reafirma permanentemente.
A principal marca identitária de nossa formação se encontra fundamentalmente no sistema escravista, quatro séculos de manutenção do regime de exploração de trabalho humano que arregimentava em sua organização castigos físicos e discursos ideológicos nos legaram um modelo de relação ao qual estamos até hoje, intrínseca e inconscientemente, associados. A violência, presente na supressão do direito humano à liberdade e em suas justificativas jurídicas e ideológicas, era não somente pedra angular do sistema escravista, mas peça chave das regras que administram os mecanismos de formação e controle atuais.
A violência é verbal e simbólica, seja exprimida em uma ordem não-contestável ou em uma ameaça inadvertida como na bem conhecida expressão "vc. sabe com quem esta falando?" ou na massacrante rotina suportada pelas massas trabalhadoras rotineiramente nas grandes metrópoles, porém ela é igualmente doutrinária quando impregna a mente coletiva com discursos liberais relacionados ao direito de ir e vir, as teorias que relacionam o sucesso com o esforço individual como no mito do
selfmadmen, as promoções da sorte vendida a varejo e claro, no maior monumento ideológico do Ocidente, o direito à propriedade, e, consequentemente, seu maior crime, bem havia dito Rousseau. É sob direito à propriedade que se salvaguardou o escravismo no Brasil, viola-lo era prejudicial à própria liberdade, defendia-se nestas terras à duzentos anos em discursos inflamados. Sermões registrados em papéis como também o foram registrados em filme fotográficos os rostos de constrangimento e rebeldia dos cativos das últimas décadas da escravidão no vale do paraíba fluminense e paulista, na Bahia, em Recife e em tantos outros lugares por Marc Ferrez, George Leuzinger ou Cristiano Jr. etc. Por fim, a violência é física, como atesta a morte do menino Douglas Rodrigues por policiais e a onda de protestos seguidos à manhã do outro dia na zona norte de São Paulo, nada ela tem de inocente ao paralelo que traçamos com o espancamento de Rodney King em Los Angeles no ano 1992.
A violência, monopólio do Estado moderno, é condenável não por sua ilegalidade, mas pela reatividade que lhe é inata. Contestar é apenas uma direção a se voltar na via contrária do processo histórico e sociológico brasileiro, fundado sobre a estigma da violência, sentencia a como irracional em seu juízo oficial e público. Os dispositivos de controle governamental se antes estavam nos olhos dos feitores que tudo viam ou nas câmeras públicas de vigilância, agora também compõe as críticas divulgadas nas bocas de nossos concidadãos. Fabianos dispostos a contestar somente a violabilidade de seus metros cúbicos através de resmungões e burburinhos. Ainda assim, que nego que o constrangimento e a rebeldia imemoriais desta "legião de homens negros como a noite" não perdeu seu acento tão pouco sua cor nos dias de hoje? É isto, um abismo se avulta sob nós.
"Paz é coisa de rico."