sábado, 15 de novembro de 2014

Carta



A carta havia sido entregue sob os cuidados de terceiros, tantos dias arrematada de seu remetente e ainda tão distante de seu destinatário a faziam frágil e urgente. Entregue como nos velhos tempos, naqueles em que ainda se escreviam cartas de amor, heróicas missivas de juras e promessas em envelopes não nomeados. Escrita a mão e sem cabeçalho, ela não tinha pretensão maior do que confessar a sobrevida de um amor já antigo. A carta se deslocou semanas, reservada entre gavetas e capas de caderno para alcançar as mãos de seu destino, quase não foi entregue, quiçá sua relutância em deixar de ser folha para se tornar carta fosse vaticino sobre um alvo incerto ou apenas um querer rebelde de quem foi posta no mundo para viajar. Por fim soube-se da entrega, anúncio tão inesperado como, imagino ser, foi aquele da sua chegada; fosse para ele como aquelas visitas que concluem sua estadia com um adeus inesperado, fosse para ela, como aquelas que irrompem a tranquildade de um dia comum com sua presença, ambas as pontas da linha deviam ter saído do prumo quase simultaneamente.
Talvez. Talvez não e simplesmente, como para toda a situação, existam dois pesos e duas medidas. A velha e desregulada balança das éticas e morais humanas. Assim, quem sabe simplesmente não a abandonou sobre o banco de uma estação, distraída como quem tem problemas de mais gravidade à seu encargo, após o toque do último apito do trem? Não, afinal, quem em dias como os de hoje, estes de comunicação tão rarefeita, resistiria ao charme e tentação de uma missiva informal e pessoal? Não há dúvida, a abriu com sanha e desejo de quem busca por água em um deserto e tem apenas à vista jogo dúbios de uma mente desesperada! Quem queremos enganar? Sabia-se um pouco sobre o seu gênio para ter certeza de que, o enfado do primeiro suspiro, jamais superaria a curiosidade sobre o conteúdo das letras que agora deveriam serpentear sob suas vistas com tanta delicadeza. Um fato era certo, lera, caso realmente haja lido, de apenas um golpe; fôlego tinha em seus pulmões, assim como todos nós necessitamos ter, porém atravessar o desespero do amor alheio quase sem desvios soa um tanto como a habilidade de quem pratica apnéia em suas horas vagas na piscina de um clube.
Sobre uma carta tem direito quem a escreveu, assim o dizem, igualmente pode ser dito sobre o quê foi escrito. Pois quem disse que quem a leu tem acesso ao mesmo conteúdo de quem a escreveu? Quem pode sondar o que se oculta atrás das letras impressas sobre um papel? A carta é antes um mensageiro do que propriamente uma mensagem, quem espera a porta do anfitrião pela recompensa, ou melhor, pela resposta. Réplica que varia desde uma mensagem, carta ou a própria devolução do envelope, a resposta mais aclarada para os flertes indesejados. Para todas as alternativas, não existe aquela sem resposta, toda resposta é bem vinda, toda resposta guarda a maldição de quem a espera.
A carta lhe chegou como um raio solar cruzando o fosso de uma nuvem espessa, a atmosfera pesada daquele dia refletia em muito o humor pesado daquele semblante indiferente. Caindo sobre suas mãos como a primeira gosta de água cai sobre o solo anunciando a chega de uma tempestade torrencial, caíram iguais muitas outras sobre sua cabeça quando iniciou sua leitura. Buscou refúgio da chuva como quem deseja um ambiente tranqüilo para leitura; queria uma dose de café de coador e conforto para refestelar-se para algumas horas de narrativa. Não optou nem ao banco da estação de trem e tão pouco ao balcão de mármore da padaria próximo a sua casa. Foi a sua cama que, junto aos gatos que costumam serpentear pela casa quando ela não está, preferiu abrir a carta para deparar-se com notícias de quem quase já não se recordava. Lia com apreço as letras de quem sempre soube dispunha de talento para as palavras e aos pouco consumia a carta, entre um gole e outro do conteúdo denso e escuro da sua caneca. Sempre fora agradável receber notícias de quem está longe e dessa vez não era diferente, iluminavam um tanto que fosse o mormaço de um dia que terminava um pouco mais respirável. Digeria aquelas linhas como a mais um conto entre tantos outros que a aguardavam de sua estante de madeira após o término deste. Tinha muito a dizer como resposta, apenas não havia urgência, largou então a carta sobre a escrivaninha e sacou um dos livros que a esperavam e aos poucos foi tomada de novas e distintas sensações da primeira leitura.
Ambas as pontas da linha conectavam mundos muito diversos. Dois lados de uma mesma página de caderno que dispunham de reflexos tão incompatíveis quanto incompreensíveis – parecia mais uma vez que Alice havia atravessado o espelho e encontrado do outro lado tudo invertido.

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