Como disse Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é". A desambiguidade da frase se revela na verdade que ignoramos, o fundo cultural sob o qual se levantou a nação brasileira é indígena, assim, inconscientemente guardamos um mesmo caudal de ideias sobre nosso modus de relação com o mundo e com os outros. Subsiste à padronização comportamental e o ensejo consumista que vigora como arquétipo sobre nossas cabeças, uma raiz que se estende e penetra o interior do continente, um fluxo contínuo de referências etimológicas, medicinais, cosmológicas e estéticas. Apesar da força do processo civilizatórios, o mapa das trocas e transformações das culturas indígenas semeou um terreno fértil para construção de uma estrutura que emerge das maneiras mais inadvertidas e inesperadas possíveis.
Caso desses me foi ofertado aqui em casa certa vez, minha mãe em uma conversa rotineira fez o dito comentário: "...coisa do Reino dos Encantados". Curioso, lhe perguntei da onde havia retirado a expressão 'Reino dos Encantados', ao que ela respondeu que simplesmente ignorava. Verdade é que tal expressão aparece igualmente no discurso cosmológico Mura, população indígena do Rio Madeira na Amazônia, com a qual definem a terra dos Caboclos do Fundo, seres demoníacos que habitam as águas mais profundas dos rios e igarapés pelos quais, todos os dias, essas comunidades cruzam com imensa cautela. Relação que se revela conflituosa dada a hostilidade com que os Mura lidam com os espaços de suas primeiras necessidades, o rio e a floresta, em contraste com o espaço de segurança e tranquilidade da aldeia.
O ponto em questão é a conexão entre o interior em que minha mãe cresceu e se formou e o pensamento ameríndio, instrumental filosófico poderoso e ainda desconhecido. Por mais que as bases de existência e formação tenham sido diferentes, nada estas tem haver com os caminhos que os pensamentos desenham e inventam.
sábado, 15 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Mulher em hotel no Brás, Cristiano Mascaro
Diante da câmera ela posa sem jeito, apoiada com um dos braços contra a parede, ela satisfaz a vontade de um anônimo que perscruta sua disponibilidade omissa. Esta ali para ele como estará todos os dias para qualquer um. Vemos o tédio e a indiferença em sua expressão e na posta indolente de quem aguarda com obrigação, mas também com esperança. Sobre ela cai a luz de uma das portas entreabertas, uma das tantas outras que compõe um longo corredor de portas entreabertas - todas elas entradas para quartos - único destino sobre o qual se instaura o labirinto da sua vida. Entretanto, a luz que ilumina o cotidiano de seu trabalho, rotina profissional costurada necessariamente no escuro, é também a luz da esperança primitiva, daquela mesma qualidade do foco de luz que alumbra a cabeça de cada novo recém nascido.
O jogo de oposições persiste como anseio da busca por uma saída em um corredor com apenas entradas, um embate entre contrastes em desequilíbrio contínuo. O claro e o escuro, o nascimento e a morte, a saída e a entrada fazem parte da narrativa que envolve fotografada e fotógrafo, todo enredo, então é esboçado na permissiva relação contratada entre ambos por uma módica quantia. O retrato imortalizado não é de um corpo castigado e cenho injustiçado, mas antes da ingenuidade de uma menina-moça que descolore seus projetos de amanhã nos traços infantis do nascer do sol que estampa sua camiseta. Nascimento ou poente, pois até ai, a dúvida se estabelece, como há de ser em um registro mudo de palavras de testemunha e repleto de intencionalidades de fotografo.
sábado, 1 de fevereiro de 2014
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser. Garante a soberania de Ser mais do que Ter.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Manoel de Barros
Tenho apenas aquilo que perdi, pois é por perder que finalmente vejo que tem ser, vejo que está dentro de mim. E como tê-la dentro se estas ai, sedutora e reluzente, fora de mim? A vejo, sobressaltado, seus gestos de nanquim como bem vive sem mim. Entretanto, quem esta ai fora já não é quem tenho aqui dentro, bem diferente, como um simulacro de quem ainda tenho presente. Quase apagada, nada se compara ao que eu guardo como joia rara. Ainda assim, vejo o quão difícil é sustentar-se diante de um espelho, vago incerto como um peixe fora do aquário diante do que não tenho por perto. Não é mais ter, é apenas ser. Me sinto um ventríloquo balbuciando palavras que não são minhas, pois a quem quero enganar? A minha presença é aquilo que me mais falta e eu não passo de um velho a me lamuriar. É que esqueço o quão grande eu era quando não me apegava ao ter, mas apenas ao ser, ser dessa infância que se passou quando eu ainda olhava para o chão a cata de tocos de galhos de árvore secos e quebradiços.
Manoel de Barros
Tenho apenas aquilo que perdi, pois é por perder que finalmente vejo que tem ser, vejo que está dentro de mim. E como tê-la dentro se estas ai, sedutora e reluzente, fora de mim? A vejo, sobressaltado, seus gestos de nanquim como bem vive sem mim. Entretanto, quem esta ai fora já não é quem tenho aqui dentro, bem diferente, como um simulacro de quem ainda tenho presente. Quase apagada, nada se compara ao que eu guardo como joia rara. Ainda assim, vejo o quão difícil é sustentar-se diante de um espelho, vago incerto como um peixe fora do aquário diante do que não tenho por perto. Não é mais ter, é apenas ser. Me sinto um ventríloquo balbuciando palavras que não são minhas, pois a quem quero enganar? A minha presença é aquilo que me mais falta e eu não passo de um velho a me lamuriar. É que esqueço o quão grande eu era quando não me apegava ao ter, mas apenas ao ser, ser dessa infância que se passou quando eu ainda olhava para o chão a cata de tocos de galhos de árvore secos e quebradiços.
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