sábado, 15 de fevereiro de 2014

Reino dos Encantados

Como disse Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é". A desambiguidade da frase se revela na verdade que ignoramos, o fundo cultural sob o qual se levantou a nação brasileira é indígena, assim, inconscientemente guardamos um mesmo caudal de ideias sobre nosso modus de relação com o mundo e com os outros. Subsiste à padronização comportamental e o ensejo consumista que vigora como arquétipo sobre nossas cabeças, uma raiz que se estende e penetra o interior do continente, um fluxo contínuo de referências etimológicas, medicinais, cosmológicas e estéticas. Apesar da força do processo civilizatórios, o mapa das trocas e transformações das culturas indígenas semeou um terreno fértil para construção de uma estrutura que emerge das maneiras mais inadvertidas e inesperadas possíveis.
Caso desses me foi ofertado aqui em casa certa vez, minha mãe em uma conversa rotineira fez o dito comentário: "...coisa do Reino dos Encantados". Curioso, lhe perguntei da onde havia retirado a expressão 'Reino dos Encantados', ao que ela respondeu que simplesmente ignorava. Verdade é que tal expressão aparece igualmente no discurso cosmológico Mura, população indígena do Rio Madeira na Amazônia, com a qual definem a terra dos Caboclos do Fundo, seres demoníacos que habitam as águas mais profundas dos rios e igarapés pelos quais, todos os dias, essas comunidades cruzam com imensa cautela. Relação que se revela conflituosa dada a hostilidade com que os Mura lidam com os espaços de suas primeiras necessidades, o rio e a floresta, em contraste com o espaço de segurança e tranquilidade da aldeia.
O ponto em questão é a conexão entre o interior em que minha mãe cresceu e se formou e o pensamento ameríndio, instrumental filosófico poderoso e ainda desconhecido. Por mais que as bases de existência e formação tenham sido diferentes, nada estas tem haver com os caminhos que os pensamentos desenham e inventam.

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