A carta havia sido entregue sob
os cuidados de terceiros, tantos dias arrematada de seu remetente e ainda tão
distante de seu destinatário a faziam frágil e urgente. Entregue como nos
velhos tempos, naqueles em que ainda se escreviam cartas de amor, heróicas
missivas de juras e promessas em envelopes não nomeados. Escrita a mão e sem
cabeçalho, ela não tinha pretensão maior do que confessar a sobrevida de um
amor já antigo. A carta se deslocou semanas, reservada entre gavetas e capas de
caderno para alcançar as mãos de seu destino, quase não foi entregue, quiçá sua
relutância em deixar de ser folha para se tornar carta fosse vaticino sobre um
alvo incerto ou apenas um querer rebelde de quem foi posta no mundo para
viajar. Por fim soube-se da entrega, anúncio tão inesperado como, imagino ser,
foi aquele da sua chegada; fosse para ele como aquelas visitas que concluem sua
estadia com um adeus inesperado, fosse para ela, como aquelas que irrompem a
tranquildade de um dia comum com sua presença, ambas as pontas da linha deviam
ter saído do prumo quase simultaneamente.
Talvez. Talvez não e
simplesmente, como para toda a situação, existam dois pesos e duas medidas. A
velha e desregulada balança das éticas e morais humanas. Assim, quem sabe
simplesmente não a abandonou sobre o banco de uma estação, distraída como quem
tem problemas de mais gravidade à seu encargo, após o toque do último apito do
trem? Não, afinal, quem em dias como os de hoje, estes de comunicação tão
rarefeita, resistiria ao charme e tentação de uma missiva informal e pessoal?
Não há dúvida, a abriu com sanha e desejo de quem busca por água em um deserto
e tem apenas à vista jogo dúbios de uma mente desesperada! Quem queremos
enganar? Sabia-se um pouco sobre o seu gênio para ter certeza de que, o enfado
do primeiro suspiro, jamais superaria a curiosidade sobre o conteúdo das letras
que agora deveriam serpentear sob suas vistas com tanta delicadeza. Um fato era
certo, lera, caso realmente haja lido, de apenas um golpe; fôlego tinha em seus
pulmões, assim como todos nós necessitamos ter, porém atravessar o desespero do
amor alheio quase sem desvios soa um tanto como a habilidade de quem pratica
apnéia em suas horas vagas na piscina de um clube.
Sobre uma carta tem direito quem
a escreveu, assim o dizem, igualmente pode ser dito sobre o quê foi escrito.
Pois quem disse que quem a leu tem acesso ao mesmo conteúdo de quem a escreveu?
Quem pode sondar o que se oculta atrás das letras impressas sobre um papel? A
carta é antes um mensageiro do que propriamente uma mensagem, quem espera a
porta do anfitrião pela recompensa, ou melhor, pela resposta. Réplica que varia
desde uma mensagem, carta ou a própria devolução do envelope, a resposta mais
aclarada para os flertes indesejados. Para todas as alternativas, não existe
aquela sem resposta, toda resposta é bem vinda, toda resposta guarda a maldição
de quem a espera.
A carta lhe chegou como um raio
solar cruzando o fosso de uma nuvem espessa, a atmosfera pesada daquele dia
refletia em muito o humor pesado daquele semblante indiferente. Caindo sobre
suas mãos como a primeira gosta de água cai sobre o solo anunciando a chega de
uma tempestade torrencial, caíram iguais muitas outras sobre sua cabeça quando
iniciou sua leitura. Buscou refúgio da chuva como quem deseja um ambiente
tranqüilo para leitura; queria uma dose de café de coador e conforto para
refestelar-se para algumas horas de narrativa. Não optou nem ao banco da
estação de trem e tão pouco ao balcão de mármore da padaria próximo a sua casa.
Foi a sua cama que, junto aos gatos que costumam serpentear pela casa quando
ela não está, preferiu abrir a carta para deparar-se com notícias de quem quase
já não se recordava. Lia com apreço as letras de quem sempre soube dispunha de
talento para as palavras e aos pouco consumia a carta, entre um gole e outro do
conteúdo denso e escuro da sua caneca. Sempre fora agradável receber notícias
de quem está longe e dessa vez não era diferente, iluminavam um tanto que fosse
o mormaço de um dia que terminava um pouco mais respirável. Digeria aquelas
linhas como a mais um conto entre tantos outros que a aguardavam de sua estante
de madeira após o término deste. Tinha muito a dizer como resposta, apenas não
havia urgência, largou então a carta sobre a escrivaninha e sacou um dos livros
que a esperavam e aos poucos foi tomada de novas e distintas sensações da
primeira leitura.
Ambas as pontas da linha
conectavam mundos muito diversos. Dois lados de uma mesma página de caderno que
dispunham de reflexos tão incompatíveis quanto incompreensíveis – parecia mais
uma vez que Alice havia atravessado o espelho e encontrado do outro lado tudo
invertido.